sábado, 2 de fevereiro de 2013

A falsa religião é o moralismo


Muita gente, cristãos e não cristãos, acha que o esvaziamento das igrejas europeias se deve a uma vitória do esclarecimento (ou da incredulidade, conforme a perspectiva cristã) sobre as trevas da ignorância (ou a piedade da fé). Trata-se de uma análise equivocada. Secularismo, feminismo, evolucionismo, ateísmo, comunismo: nenhum deles é o maior inimigo da igreja. Nós não precisamos nos preocupar com os homossexuais nem com as mulatas do samba. Os regimes políticos não podem nos calar ou nos amedrontar. Darwin e Freud não esvaziam igrejas.

Nosso maior inimigo somos nós mesmos. Porque, como religiosos, somos constantemente tentados a ceder ao moralismo em nome da preservação dos bons costumes. E não existe nada mais contrário ao evangelho que o moralismo. O moralismo é a falsa religião por excelência, que afasta as pessoas do Deus verdadeiro. Ele resume tudo aquilo que pensamos ser a verdadeira religião. Ora, o ensino de Jesus consistia em mostrar como nós, homens, não sabemos nada a respeito da verdadeira religião; que somos péssimos fundadores de religião.

O moralismo é uma espécie de autoengano pelo qual alimentamos a ilusão de que estamos em dia com aquilo de que acusamos o outro, isso porque nunca paramos seriamente para pensar se realmente estamos em dia. O moralismo é o próprio adiamento da prestação pessoal de contas. Acabamos envolvidos nesse jogo no qual, para fugir de nós mesmos e do reconhecimento das nossas persistentes mazelas pessoais, procuramos um bode expiatório, alguém aparentemente mais sujo que nós. A regra do jogo é essa: ache alguém mais culpado, isto é, alguém com cara de culpado. Por isso o moralista é também conhecido como certinho, santinho e beato. Aos olhos de Deus, o moralista é o pecador que penteia o cabelo e sempre anda com a camisa dentro da calça. É como passar perfume para disfarçar que não tomamos banho desde a semana passada, mas isso apenas em seu aspecto patético.

O moralismo antecipa a sociedade do espetáculo, inventando uma modalidade religiosa do consumo contemporâneo de imagens. Não importa tanto ser justo quanto parecer justo; não importa tanto ser casto quanto parecer casto. O interior do homem é cheio de cobiça, prostituição e maldade, mas ninguém precisa ficar sabendo disso. O moralista vende a imagem de justo e de puro, às custas daqueles que não podem ou querem sustentar essa imagem. Gente tatuada, gente que fala alto, gente como os homossexuais.

Ou seja, o moralista é, no fundo, um falsificador. O moralismo é um tipo de pirataria religiosa. A justiça do moralista não é a própria justiça; a pureza do moralista não é a própria pureza. As virtudes do moralista dependem dos vícios alheios. O moralista se eleva moralmente rebaixando os outros, subindo nas costas dos outros. Contrariando a natureza, ele se comporta como um predador de sua própria espécie, ambientando-se e procurando identificar qual dos membros do bando é o mais fraco. Então ataca. Quantas jovens deixaram a igreja porque ficaram mal faladas? E quem é que as deixou mal faladas? Apartai-vos de mim vós que praticais a injustiça.

A perpetuação do moralismo dentro da igreja exige inúmeras crucificações. O moralismo é a falsa religião porque é a religião do falso bode expiatório. O moralista no fundo não acredita na eficácia da cruz de Cristo como morte substitutiva do pecador que livra do pecado. A conduta inquisitiva do moralista exige que ainda uma vez alguém seja sacrificado. O moralismo, enquanto insiste na necessidade do sacrifício, é uma forma de paganismo. O pagão é aquele que ainda não tomou conhecimento da morte do cordeiro de Deus e que, portanto, se acha refém da natureza e de seus elementos, a quem cultua, associando a fortuna e a desventura à satisfação que o homem pode dar aos deuses. É a religiosidade do medo. O sacrifício é necessário quando o medo é maior que o amor. Não existe moralismo sem a cultura da delação e do medo. Já não somos irmãos, mas guardas de uma prisão.

Mas a maior de todas as desventuras, a raiz mesma delas, de onde nós mesmos parecemos brotar, o mal, permanece incontrolável. Deve regularmente assombrar ao pagão/moralista a ideia de que todos os sacrifícios são inúteis, do contrário não precisariam ser renovados, porque nenhum deles pode apagar o mal. O mal é como uma sombra inapreensível no imaginário religioso do paganismo/moralismo. O mal das colheitas e o mal da enfermidade do filho podem ser contornados. Mas eventualmente a mente, em seu velho vício de abstrair, hipostasia essa entidade assustadora a partir de todas as suas manifestações, surgindo o mal em si mesmo, o mal no homem. O mal como doença, o homem como doença. Chega-se então ao ponto em que a distância entre deuses e homens se torna insuportável. O abismo que separa o divino do humano se alarga, fazendo aumentar o número dos sacrificados.

Um elemento positivo do moralismo deveria ser justamente sua desconfiança em relação ao gênero humano. A princípio, ela livraria nossa antropologia de quaisquer resquícios rousseaunianos. Pena que essa desconfiança sempre tende a se fixar nas outras pessoas, nunca em nós mesmos. A postura do moralista em relação aos demais homens é que ele é a exceção à regra. Os demais homens são corruptos, exceto ele, seja porque ele guarda o sábado e nunca se esquece das abluções, seja porque ele foi lavado e remido pelo sangue do Cordeiro. O conteúdo das justificativas muda, mas a forma viciada de se ver acima do outro é a mesma. O grande inimigo da igreja é a conversão do cristão em fariseu, em moralista. Por mais que nos orgulhemos de ser versados nas escrituras, temos lido mal os evangelhos. Como os escribas, ficamos com a letra e esquecemos o espírito. O moralismo é o sintoma de leituras deficientes dos evangelhos que nos levaram para o outro lado da disputa entre Jesus e os fariseus, entre o espírito e a letra, entre a misericórdia e o sacrifício.

Pois em que momento da história da igreja o alvo da pregação do evangelho deixou de ser a falsa religião e a arrogância dos religiosos e passou a ser as prostitutas, os homossexuais, os pobres e os marginalizados em geral? Em que momento da história da igreja a hipocrisia e o moralismo deixaram de ser os principais obstáculos à nossa entrada no reino de Deus, concentrando-se os pregadores nos pecados sexuais dos outros? Em que momento da história da igreja apagamos das escrituras 1 Coríntios 5.12 e nos transformamos na patrulha moral da sociedade? Hoje em dia os cristãos passam mais tempo se defendendo dos comportamentos de uma sociedade da qual discordam que pregando Jesus e, para se justificar, dizem que denunciar os abusos morais dos outros é o mesmo que pregar Jesus. Ora, trata-se de um terrível engano.

O evangelho nunca começa por qualquer regra de conduta. O evangelho só tem um ponto de partida legítimo – Jesus Cristo: quem ele é, o que ele disse e o que ele fez. O resto – inclusive sua aversão à sexualidade e à tatuagem alheias, meu irmão – é resto. O Espírito ensinará aqueles que têm o Espírito. Mas primeiro é necessário que as pessoas recebam o Espírito e, para isso, é primeiro necessário que elas conheçam Jesus Cristo: quem ele é, o que ele disse e o que ele fez. As pessoas precisam da verdade; mas a verdade não somos nós nem nossos modelos de conduta. A verdade é Jesus Cristo. O problema do moralista é que ele sempre prega a si mesmo como exemplo, e ele é um péssimo exemplo. Talvez a única diferença entre nós e os acusadores da mulher surpreendida em adultério de João 8 seja que nós, alegando estar sem pecado por causa do sangue de Cristo, a teríamos apedrejado.

O moralismo está para o evangelho como a maquiagem está para a juventude. O primeiro tenta simular os efeitos que apenas o segundo pode produzir. Só o evangelho pode realmente transformar uma pessoa. Transformação acontece de dentro pra fora. Mas o moralismo só pode alterar o exterior. Da exterioridade se ocupam também os hipócritas, reduzindo a espiritualidade à encenação. Paulo preferia uma igreja libertina a uma igreja hipócrita. Vide as duas epístolas aos coríntios. Quando digo preferia, me refiro ao evangelho que ele pregou aos coríntios e ao modo como ele enfrentou as dificuldades com aquela comunidade. Ele não exerceu domínio sobre a fé de seus ouvintes. Ele argumentou com eles. Mostrou-lhes que não convinha que se entregassem a quaisquer desejos como escravos. Ele enfatizou a liberdade cristã sob todos os aspectos. Essa liberdade concedida no evangelho nos informa que estamos livres do pecado de uma dupla maneira: somos livres para pecar, porque já não há condenação sobre nós, e para não pecar, porque nascemos de novo e já não somos escravos da velha natureza do pecado. Quem lê entenda. Agora finalmente podemos escolher.

A hipocrisia se alimenta da aparência e do controle sobre a vida alheia. Ao passo que a libertinagem seria um efeito colateral e passageiro (não necessário, mas possível) do processo que conduz as pessoas à liberdade. O único início legítimo do evangelho é a liberdade. A doutrina da justificação pela fé está assentada sobre a nossa total incapacidade de fazer a coisa certa. O novo nascimento é um novo começo. Nossas dívidas foram saldadas na e pela cruz. Gloriar-se na cruz de Cristo, como diz Paulo, é alegrar-se com o fato de que somos justos por causa dele. Já não devemos nada a ninguém. Ou - o que é a mesma coisa - devemos tudo àquele que se entregou por nós, como quem deve a vida ao melhor amigo. É sobre esse tipo de consciência que a verdadeira espiritualidade deve estar apoiada. E não sobre o medo do inferno ou da condenação. Esses são os rudimentos do mundo. Estamos em casa agora.

Voz que reclama

Bem-aventurados