sábado, 19 de janeiro de 2013

Teologias passam

Não adiante insistir na teologia reformada como "a" teologia. Toda teologia é circunstancial; toda teologia é um produto da história. Isso quer dizer que ela foi formulada segundo necessidades específicas de uma época específica que talvez já não sejam as necessidades da nossa época. Teologias têm prazo de validade. Elas passam. O que não passa é a palavra de Deus. O que não passa é o Cristo, perfeição da revelação. Insistir em "uma" teologia é demonstrar falta de senso histórico e, portanto, falta de senso missiológico. Em vez de humildemente se curvar às necessidades do outro, que são necessidades da cultura, necessidades do homem, como Jesus fez encarnando e Paulo se fazendo gentio, a gente quer impor a nossa teologia, a nossa cultura, a nossa moral, as nossas regras. Confundimos o anúncio da boa nova com imposição de um estilo de vida. Confundimos evangelismo com imperialismo. 

O grande erro das autoridades religiosas, em todos os tempos e credos, é transformar o contingente em eterno e o humano em divino. O mandamento humano vendido como mandamento divino. Ouviram que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Mas entenderam? Hoje o que se vê, da parte de gente bem-intencionada até, é o homem feito para a teologia em vez de a teologia feita para o homem. O propósito de fazer teologia "do ponto de vista de Deus" e assim "combater o humanismo e a secularização" soa lindo, mas no fundo é sinal de que não entenderam o que é teologia. 

O ponto de vista de Deus já está dado: é Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne. Ele é inclusive o humanismo de Deus, humanismo avant la lettre. Agora, o que vem a seguir é como a gente responde àquela pergunta de Jesus aos escribas e doutores da lei: como lês? Como você lê isto - Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne? Esse é o evento, o fato, o objeto a ser lido, a ser teologizado. Esse é o ponto produtor das teologias. E quem é que produz essas teologias? Somos nós, guiados pelo Espírito Santo, conforme as nossas necessidades. O eterno é esse evento. O contingente somos nós. O Espírito nos ajuda a ler conforme o que nos falta. O bororo vai ler o evento segundo as necessidades do bororo. A mãe solteira vai ler o evento segundo as necessidades da mãe solteira. O evento está dado. Nós é que não estamos. Nós e nossas teologias. 

O desastre é fazer da minha teologia a teologia de todo o mundo, a única teologia. A teologia oficial. Imagine o desastre - social, histórico, missiológico - de se enfiar goela baixo no bororo a teologia da mãe solteira. Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne nos termos da mãe solteira não fará o menor sentido para o bororo. O evento se perderá porque não houve adequação cultural, isto é, teológica, ou, como dizem os missiólogos, aculturação. Muita gente se perde só porque a gente não consegue pensar fora das nossas cabecinhas. Inteligência é pensar com a cabeça dos outros. Missão é pensar com a cabeça dos outros. A encarnação é Deus pensando com a cabeça dos outros. Deus pensando com a cabeça da criatura. 

Mas a gente tem nojinho do pós-modernismo. A gente tem nojinho dos movimentos sociais. A gente tem nojinho do movimento LGBT. A gente tem nojinho da nossa geração. Me pergunto se Paulo, chamado apóstolo dos gentios, tinha nojinho dos gentios. A gente quer resgatar os valores de antigamente. A gente quer resgatar a família. Mas pregar o evangelho não é pregar moral e bons costumes. Isso é moralismo. Moralismo é o nome moderno do farisaísmo; o mesmo que crucificou Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne. 

Leiam o começo do capítulo 4 do evangelho de João e prestem atenção no diálogo de Jesus com a mulher samaritana. Ele não pregou contra o pecado dela porque ela já sabia qual era seu pecado. Ele pregou a favor das necessidades dela. Ele pregou a satisfação das necessidades dela. Ele se pregou como satisfação das necessidades dela. Isso é evangelho: pregar Jesus como solução. O pecado é só sintoma. A maioria das pregações é apenas condenação de pecado, isto é, listagem dos sintomas. A causa nunca é apresentada. Muito menos a cura. Falar que Jesus é a resposta e parar por aí é o mesmo que dar um bisturi na mão de uma criança de dez anos e dizer: se vira. Isso pode salvar sua vida, mas você também pode sangrar até a morte. 

Missionários relatam aparições de Jesus para indígenas, que o veem como indígena, e não como um europeu de cabelos compridos e olhos claros. Bom, o uso que fazemos da teologia reformada é o mesmo que empurrar um Jesus de olhos azuis para um indígena. Aliás, é o que fazemos com os negros; é o que fazemos com os orientais. Saudades do patriarcado não vão alcançar esta geração. Não adianta ter saudades de uma idade de ouro, quando as pessoas respeitavam a família e os bons costumes, antes do iluminismo e do secularismo. O mundo jaz no maligno ontem, hoje e sempre. Antes do iluminismo já era ruim. Protestante ressentido com o iluminismo é até absurdo. O iluminismo é apenas consequência do renascimento; e protestantismo e renascimento são unha e carne. O que meus irmãos querem? Um retorno à idade média? À hegemonia cultural da igreja católica? Isto é, o que eles querem é a supressão da "plenitude dos tempos" da reforma? 

Não se trata de fazer apologia do iluminismo, mas de assinalar que a história não para. Ela é movimento, cheia de erros, acertos, crimes e injustiças humanas. E é através dela que a soberania de Deus se exerce, na e pela história. Mas meus irmãos que pregam uma adesão estrita à teologia reformada parecem querer parar a história, parar o movimento, como se duvidassem do controle de Deus sobre ela. A manobra emergencial que adotam é tomar a cabeça do homem da idade média - que é o homem que precisou elaborar a teologia da reforma - e fazer dela a nossa cabeça. Não funciona. O homem da idade média e sua teologia é tão compatível com o adolescente negro da periferia ouvinte de Racionais MCs quanto o bororo é compatível com a mãe solteira. Ou seja, no fundo, há alguma compatibilidade: ambos são gente, seja lá o que isso signifique. Acho que só Deus sabe o que isso significa - ser gente - e por isso mesmo ele é o nosso denominador comum, Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne, e por isso o Espírito é o intérprete autorizado das escrituras.

Mas vamos aposentar a teologia reformada? Muito pelo contrário: vamos dar ouvidos a Paulo e reter o que é bom. Beber da tradição e atualizar a tradição em vista das necessidades desta geração, isto é, nos termos do modo de pensar e de sentir desta geração. Ou falamos sua língua e respeitamos sua cultura - secular, anticlerical, humanista, relativista, transgênero -, ou não seremos ouvidos. Só assim alcançaremos esta geração e qualquer outra. Até quando afastaremos Jesus das pessoas, das culturas, por causa da nossa cultura, da nossa cabeça, da nossa teologia? As culturas - a minha e a sua - passam, mas Cristo permanece. Como você lê isso?

Voz que reclama

Bem-aventurados