sábado, 23 de novembro de 2013

Cristianismo e paganismo

O ocidente é uma criação do cristianismo. A dominação sobre a natureza é a vitória do homem sobre as forças impessoais do meio. As condições para a aquisição do conhecimento que emanciparia o homem do cativeiro da natureza são dadas pela cosmovisão cristã, segundo a qual o mundo é criação de um Deus racional que o sustenta e governa ainda agora. A noção de providência garante que o mundo tem uma ordem (é portanto em si mesmo racional) que pode ser apreendida e manipulada para o bem do homem. Além disso, afirmando que a única coisa digna de culto e de temor é o Deus absolutamente transcendente, o cristianismo anuncia ao homem que nada neste mundo, humano ou não, é objeto de servidão. O homem já não se curva amedrontado diante dos fenômenos naturais nem pode justificar a opressão sobre o próximo em nome do privilégio divino de uma minoria. Nada no mundo é divino. Tudo está submetido ao homem porque foi submetido por Deus a ele. Nenhum homem está submetido a outro porque todos estão submetidos a Deus (1 Coríntios 8.5-6).

A igualdade humana tem um único fundamento: é uma igualdade diante de Deus. A recusa de Deus como fundamento restabelece as variadas formas históricas de opressão. Hoje acredita-se que um retorno ao paganismo seria uma emancipação da opressão do moralismo judaico-cristão e uma substituição da paixão técnica que reifica o homem por uma relação harmoniosa com o cosmo. Mas isso é uma falsificação histórica ou no mínimo uma idealização cristã do paganismo, ou seja, uma idealização do homem emancipado da natureza que pode soberanamente decidir voltar-se a ela. Quem idealiza o paganismo o idealiza a partir dos privilégios legados pelo cristianismo.

O retorno ao paganismo é de fato uma regressão. O cristianismo emancipou o homem do paganismo, isto é, dos inúmeros determinismos do paganismo (Colossenses 2.10-16). No mundo do paganismo o homem é jogado de um lado para o outro pelo capricho dos deuses ou pela irracionalidade cega da natureza, o que dá na mesma. O homem pagão não ama a natureza – só o homem emancipado pode realmente amá-la –, mas a teme. Por isso é obrigado a lhe prestar culto e buscar seu favor sem quaisquer garantias. No mundo do paganismo a proximidade do divino permite que a qualquer momento um grupo tome o seu lugar para oprimir outro (Colossenses 2.8). De fato, divinizar o mundo é multiplicar as oportunidades e justificativas de servidão. 




O humanismo – a excelência do homem, a doutrina do valor do homem – só alcança universalidade pelo cristianismo. O humanismo romano é a garantia dos direitos humanos do romano. Ao passo que o cristianismo nivela a todos em Cristo (Gálatas 3.26-28). É o rompimento espiritual – e portanto núcleo de toda futura teoria crítica da dominação – com todos os vínculos de opressão. O rompimento espiritual precede o rompimento histórico. Os crimes da cristandade sempre decorrem da divinização de um elemento do mundo – um líder religioso, uma autoridade política ou uma instituição social. Os crimes da cristandade já são indícios de um retorno ao paganismo, aos vínculos espirituais de escravidão.

O próprio secularismo é um produto da herança cristã do ocidente. Nas civilizações pré-cristãs, pagãs, autoridade religiosa e estatal era uma só. O culto ao imperador, por exemplo, era a base ideológica da estrutura política do império romano. As injustiças sociais estavam assentadas sobre uma ordem divina inalterável encarnada em homens e coisas diante das quais só era admitido o culto conformado e agradecido. O cristianismo reconhece a desordem do mundo (1 João 5.19) – logo a necessidade de lutar contra ela em nome do reino de Deus – e a atribui ao pecado do homem, ou seja, responsabiliza o homem perante Deus e perante o homem, e assim fundamenta movimentos revolucionários de emancipação. 

A separação entre autoridade religiosa e política vem a se estabelecer com o cristianismo, como separação entre igreja e Estado: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Novamente o cristianismo, ao negar caráter divino a qualquer elemento do mundo, confere a dignidade própria de cada esfera da ordem criada uma em relação à outra. O Estado pode ser Estado porque não é igreja, e vice-versa. Hoje cristãos e não cristãos andam esquecidos do que é realmente o secularismo e de sua relação com a fé cristã. Hoje o ocidente quer se emancipar do cristianismo sem compreender que isso implica retornar ao paganismo – ou seja, à servidão do paganismo. Trata-se de um processo facilmente verificável: executivos para quem só o dinheiro importa – o que qualquer um consideraria o cúmulo da racionalidade e do materialismo desencantado – cercam-se de pedras, pirâmides e cristais para afastar as “energias negativas” que prejudicariam os negócios. A crença em “energias” é o reencantamento de um mundo desencantado pela força de esclarecimento do cristianismo. Novamente o homem se curva diante dos elementos do mundo. O ocidente, como o filho pródigo, se esquece de sua essência divina, afastando-se do pai, para enfiar a cara nas bolotas de porco.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

A falsa religião é o moralismo


Muita gente, cristãos e não cristãos, acha que o esvaziamento das igrejas europeias se deve a uma vitória do esclarecimento (ou da incredulidade, conforme a perspectiva cristã) sobre as trevas da ignorância (ou a piedade da fé). Trata-se de uma análise equivocada. Secularismo, feminismo, evolucionismo, ateísmo, comunismo: nenhum deles é o maior inimigo da igreja. Nós não precisamos nos preocupar com os homossexuais nem com as mulatas do samba. Os regimes políticos não podem nos calar ou nos amedrontar. Darwin e Freud não esvaziam igrejas.

Nosso maior inimigo somos nós mesmos. Porque, como religiosos, somos constantemente tentados a ceder ao moralismo em nome da preservação dos bons costumes. E não existe nada mais contrário ao evangelho que o moralismo. O moralismo é a falsa religião por excelência, que afasta as pessoas do Deus verdadeiro. Ele resume tudo aquilo que pensamos ser a verdadeira religião. Ora, o ensino de Jesus consistia em mostrar como nós, homens, não sabemos nada a respeito da verdadeira religião; que somos péssimos fundadores de religião.

O moralismo é uma espécie de autoengano pelo qual alimentamos a ilusão de que estamos em dia com aquilo de que acusamos o outro, isso porque nunca paramos seriamente para pensar se realmente estamos em dia. O moralismo é o próprio adiamento da prestação pessoal de contas. Acabamos envolvidos nesse jogo no qual, para fugir de nós mesmos e do reconhecimento das nossas persistentes mazelas pessoais, procuramos um bode expiatório, alguém aparentemente mais sujo que nós. A regra do jogo é essa: ache alguém mais culpado, isto é, alguém com cara de culpado. Por isso o moralista é também conhecido como certinho, santinho e beato. Aos olhos de Deus, o moralista é o pecador que penteia o cabelo e sempre anda com a camisa dentro da calça. É como passar perfume para disfarçar que não tomamos banho desde a semana passada, mas isso apenas em seu aspecto patético.

O moralismo antecipa a sociedade do espetáculo, inventando uma modalidade religiosa do consumo contemporâneo de imagens. Não importa tanto ser justo quanto parecer justo; não importa tanto ser casto quanto parecer casto. O interior do homem é cheio de cobiça, prostituição e maldade, mas ninguém precisa ficar sabendo disso. O moralista vende a imagem de justo e de puro, às custas daqueles que não podem ou querem sustentar essa imagem. Gente tatuada, gente que fala alto, gente como os homossexuais.

Ou seja, o moralista é, no fundo, um falsificador. O moralismo é um tipo de pirataria religiosa. A justiça do moralista não é a própria justiça; a pureza do moralista não é a própria pureza. As virtudes do moralista dependem dos vícios alheios. O moralista se eleva moralmente rebaixando os outros, subindo nas costas dos outros. Contrariando a natureza, ele se comporta como um predador de sua própria espécie, ambientando-se e procurando identificar qual dos membros do bando é o mais fraco. Então ataca. Quantas jovens deixaram a igreja porque ficaram mal faladas? E quem é que as deixou mal faladas? Apartai-vos de mim vós que praticais a injustiça.

A perpetuação do moralismo dentro da igreja exige inúmeras crucificações. O moralismo é a falsa religião porque é a religião do falso bode expiatório. O moralista no fundo não acredita na eficácia da cruz de Cristo como morte substitutiva do pecador que livra do pecado. A conduta inquisitiva do moralista exige que ainda uma vez alguém seja sacrificado. O moralismo, enquanto insiste na necessidade do sacrifício, é uma forma de paganismo. O pagão é aquele que ainda não tomou conhecimento da morte do cordeiro de Deus e que, portanto, se acha refém da natureza e de seus elementos, a quem cultua, associando a fortuna e a desventura à satisfação que o homem pode dar aos deuses. É a religiosidade do medo. O sacrifício é necessário quando o medo é maior que o amor. Não existe moralismo sem a cultura da delação e do medo. Já não somos irmãos, mas guardas de uma prisão.

Mas a maior de todas as desventuras, a raiz mesma delas, de onde nós mesmos parecemos brotar, o mal, permanece incontrolável. Deve regularmente assombrar ao pagão/moralista a ideia de que todos os sacrifícios são inúteis, do contrário não precisariam ser renovados, porque nenhum deles pode apagar o mal. O mal é como uma sombra inapreensível no imaginário religioso do paganismo/moralismo. O mal das colheitas e o mal da enfermidade do filho podem ser contornados. Mas eventualmente a mente, em seu velho vício de abstrair, hipostasia essa entidade assustadora a partir de todas as suas manifestações, surgindo o mal em si mesmo, o mal no homem. O mal como doença, o homem como doença. Chega-se então ao ponto em que a distância entre deuses e homens se torna insuportável. O abismo que separa o divino do humano se alarga, fazendo aumentar o número dos sacrificados.

Um elemento positivo do moralismo deveria ser justamente sua desconfiança em relação ao gênero humano. A princípio, ela livraria nossa antropologia de quaisquer resquícios rousseaunianos. Pena que essa desconfiança sempre tende a se fixar nas outras pessoas, nunca em nós mesmos. A postura do moralista em relação aos demais homens é que ele é a exceção à regra. Os demais homens são corruptos, exceto ele, seja porque ele guarda o sábado e nunca se esquece das abluções, seja porque ele foi lavado e remido pelo sangue do Cordeiro. O conteúdo das justificativas muda, mas a forma viciada de se ver acima do outro é a mesma. O grande inimigo da igreja é a conversão do cristão em fariseu, em moralista. Por mais que nos orgulhemos de ser versados nas escrituras, temos lido mal os evangelhos. Como os escribas, ficamos com a letra e esquecemos o espírito. O moralismo é o sintoma de leituras deficientes dos evangelhos que nos levaram para o outro lado da disputa entre Jesus e os fariseus, entre o espírito e a letra, entre a misericórdia e o sacrifício.

Pois em que momento da história da igreja o alvo da pregação do evangelho deixou de ser a falsa religião e a arrogância dos religiosos e passou a ser as prostitutas, os homossexuais, os pobres e os marginalizados em geral? Em que momento da história da igreja a hipocrisia e o moralismo deixaram de ser os principais obstáculos à nossa entrada no reino de Deus, concentrando-se os pregadores nos pecados sexuais dos outros? Em que momento da história da igreja apagamos das escrituras 1 Coríntios 5.12 e nos transformamos na patrulha moral da sociedade? Hoje em dia os cristãos passam mais tempo se defendendo dos comportamentos de uma sociedade da qual discordam que pregando Jesus e, para se justificar, dizem que denunciar os abusos morais dos outros é o mesmo que pregar Jesus. Ora, trata-se de um terrível engano.

O evangelho nunca começa por qualquer regra de conduta. O evangelho só tem um ponto de partida legítimo – Jesus Cristo: quem ele é, o que ele disse e o que ele fez. O resto – inclusive sua aversão à sexualidade e à tatuagem alheias, meu irmão – é resto. O Espírito ensinará aqueles que têm o Espírito. Mas primeiro é necessário que as pessoas recebam o Espírito e, para isso, é primeiro necessário que elas conheçam Jesus Cristo: quem ele é, o que ele disse e o que ele fez. As pessoas precisam da verdade; mas a verdade não somos nós nem nossos modelos de conduta. A verdade é Jesus Cristo. O problema do moralista é que ele sempre prega a si mesmo como exemplo, e ele é um péssimo exemplo. Talvez a única diferença entre nós e os acusadores da mulher surpreendida em adultério de João 8 seja que nós, alegando estar sem pecado por causa do sangue de Cristo, a teríamos apedrejado.

O moralismo está para o evangelho como a maquiagem está para a juventude. O primeiro tenta simular os efeitos que apenas o segundo pode produzir. Só o evangelho pode realmente transformar uma pessoa. Transformação acontece de dentro pra fora. Mas o moralismo só pode alterar o exterior. Da exterioridade se ocupam também os hipócritas, reduzindo a espiritualidade à encenação. Paulo preferia uma igreja libertina a uma igreja hipócrita. Vide as duas epístolas aos coríntios. Quando digo preferia, me refiro ao evangelho que ele pregou aos coríntios e ao modo como ele enfrentou as dificuldades com aquela comunidade. Ele não exerceu domínio sobre a fé de seus ouvintes. Ele argumentou com eles. Mostrou-lhes que não convinha que se entregassem a quaisquer desejos como escravos. Ele enfatizou a liberdade cristã sob todos os aspectos. Essa liberdade concedida no evangelho nos informa que estamos livres do pecado de uma dupla maneira: somos livres para pecar, porque já não há condenação sobre nós, e para não pecar, porque nascemos de novo e já não somos escravos da velha natureza do pecado. Quem lê entenda. Agora finalmente podemos escolher.

A hipocrisia se alimenta da aparência e do controle sobre a vida alheia. Ao passo que a libertinagem seria um efeito colateral e passageiro (não necessário, mas possível) do processo que conduz as pessoas à liberdade. O único início legítimo do evangelho é a liberdade. A doutrina da justificação pela fé está assentada sobre a nossa total incapacidade de fazer a coisa certa. O novo nascimento é um novo começo. Nossas dívidas foram saldadas na e pela cruz. Gloriar-se na cruz de Cristo, como diz Paulo, é alegrar-se com o fato de que somos justos por causa dele. Já não devemos nada a ninguém. Ou - o que é a mesma coisa - devemos tudo àquele que se entregou por nós, como quem deve a vida ao melhor amigo. É sobre esse tipo de consciência que a verdadeira espiritualidade deve estar apoiada. E não sobre o medo do inferno ou da condenação. Esses são os rudimentos do mundo. Estamos em casa agora.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Teologias passam

Não adiante insistir na teologia reformada como "a" teologia. Toda teologia é circunstancial; toda teologia é um produto da história. Isso quer dizer que ela foi formulada segundo necessidades específicas de uma época específica que talvez já não sejam as necessidades da nossa época. Teologias têm prazo de validade. Elas passam. O que não passa é a palavra de Deus. O que não passa é o Cristo, perfeição da revelação. Insistir em "uma" teologia é demonstrar falta de senso histórico e, portanto, falta de senso missiológico. Em vez de humildemente se curvar às necessidades do outro, que são necessidades da cultura, necessidades do homem, como Jesus fez encarnando e Paulo se fazendo gentio, a gente quer impor a nossa teologia, a nossa cultura, a nossa moral, as nossas regras. Confundimos o anúncio da boa nova com imposição de um estilo de vida. Confundimos evangelismo com imperialismo. 

O grande erro das autoridades religiosas, em todos os tempos e credos, é transformar o contingente em eterno e o humano em divino. O mandamento humano vendido como mandamento divino. Ouviram que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Mas entenderam? Hoje o que se vê, da parte de gente bem-intencionada até, é o homem feito para a teologia em vez de a teologia feita para o homem. O propósito de fazer teologia "do ponto de vista de Deus" e assim "combater o humanismo e a secularização" soa lindo, mas no fundo é sinal de que não entenderam o que é teologia. 

O ponto de vista de Deus já está dado: é Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne. Ele é inclusive o humanismo de Deus, humanismo avant la lettre. Agora, o que vem a seguir é como a gente responde àquela pergunta de Jesus aos escribas e doutores da lei: como lês? Como você lê isto - Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne? Esse é o evento, o fato, o objeto a ser lido, a ser teologizado. Esse é o ponto produtor das teologias. E quem é que produz essas teologias? Somos nós, guiados pelo Espírito Santo, conforme as nossas necessidades. O eterno é esse evento. O contingente somos nós. O Espírito nos ajuda a ler conforme o que nos falta. O bororo vai ler o evento segundo as necessidades do bororo. A mãe solteira vai ler o evento segundo as necessidades da mãe solteira. O evento está dado. Nós é que não estamos. Nós e nossas teologias. 

O desastre é fazer da minha teologia a teologia de todo o mundo, a única teologia. A teologia oficial. Imagine o desastre - social, histórico, missiológico - de se enfiar goela baixo no bororo a teologia da mãe solteira. Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne nos termos da mãe solteira não fará o menor sentido para o bororo. O evento se perderá porque não houve adequação cultural, isto é, teológica, ou, como dizem os missiólogos, aculturação. Muita gente se perde só porque a gente não consegue pensar fora das nossas cabecinhas. Inteligência é pensar com a cabeça dos outros. Missão é pensar com a cabeça dos outros. A encarnação é Deus pensando com a cabeça dos outros. Deus pensando com a cabeça da criatura. 

Mas a gente tem nojinho do pós-modernismo. A gente tem nojinho dos movimentos sociais. A gente tem nojinho do movimento LGBT. A gente tem nojinho da nossa geração. Me pergunto se Paulo, chamado apóstolo dos gentios, tinha nojinho dos gentios. A gente quer resgatar os valores de antigamente. A gente quer resgatar a família. Mas pregar o evangelho não é pregar moral e bons costumes. Isso é moralismo. Moralismo é o nome moderno do farisaísmo; o mesmo que crucificou Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne. 

Leiam o começo do capítulo 4 do evangelho de João e prestem atenção no diálogo de Jesus com a mulher samaritana. Ele não pregou contra o pecado dela porque ela já sabia qual era seu pecado. Ele pregou a favor das necessidades dela. Ele pregou a satisfação das necessidades dela. Ele se pregou como satisfação das necessidades dela. Isso é evangelho: pregar Jesus como solução. O pecado é só sintoma. A maioria das pregações é apenas condenação de pecado, isto é, listagem dos sintomas. A causa nunca é apresentada. Muito menos a cura. Falar que Jesus é a resposta e parar por aí é o mesmo que dar um bisturi na mão de uma criança de dez anos e dizer: se vira. Isso pode salvar sua vida, mas você também pode sangrar até a morte. 

Missionários relatam aparições de Jesus para indígenas, que o veem como indígena, e não como um europeu de cabelos compridos e olhos claros. Bom, o uso que fazemos da teologia reformada é o mesmo que empurrar um Jesus de olhos azuis para um indígena. Aliás, é o que fazemos com os negros; é o que fazemos com os orientais. Saudades do patriarcado não vão alcançar esta geração. Não adianta ter saudades de uma idade de ouro, quando as pessoas respeitavam a família e os bons costumes, antes do iluminismo e do secularismo. O mundo jaz no maligno ontem, hoje e sempre. Antes do iluminismo já era ruim. Protestante ressentido com o iluminismo é até absurdo. O iluminismo é apenas consequência do renascimento; e protestantismo e renascimento são unha e carne. O que meus irmãos querem? Um retorno à idade média? À hegemonia cultural da igreja católica? Isto é, o que eles querem é a supressão da "plenitude dos tempos" da reforma? 

Não se trata de fazer apologia do iluminismo, mas de assinalar que a história não para. Ela é movimento, cheia de erros, acertos, crimes e injustiças humanas. E é através dela que a soberania de Deus se exerce, na e pela história. Mas meus irmãos que pregam uma adesão estrita à teologia reformada parecem querer parar a história, parar o movimento, como se duvidassem do controle de Deus sobre ela. A manobra emergencial que adotam é tomar a cabeça do homem da idade média - que é o homem que precisou elaborar a teologia da reforma - e fazer dela a nossa cabeça. Não funciona. O homem da idade média e sua teologia é tão compatível com o adolescente negro da periferia ouvinte de Racionais MCs quanto o bororo é compatível com a mãe solteira. Ou seja, no fundo, há alguma compatibilidade: ambos são gente, seja lá o que isso signifique. Acho que só Deus sabe o que isso significa - ser gente - e por isso mesmo ele é o nosso denominador comum, Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne, e por isso o Espírito é o intérprete autorizado das escrituras.

Mas vamos aposentar a teologia reformada? Muito pelo contrário: vamos dar ouvidos a Paulo e reter o que é bom. Beber da tradição e atualizar a tradição em vista das necessidades desta geração, isto é, nos termos do modo de pensar e de sentir desta geração. Ou falamos sua língua e respeitamos sua cultura - secular, anticlerical, humanista, relativista, transgênero -, ou não seremos ouvidos. Só assim alcançaremos esta geração e qualquer outra. Até quando afastaremos Jesus das pessoas, das culturas, por causa da nossa cultura, da nossa cabeça, da nossa teologia? As culturas - a minha e a sua - passam, mas Cristo permanece. Como você lê isso?

Voz que reclama

Bem-aventurados