quarta-feira, 28 de abril de 2010

1. Método ou como é que eu fiz

Vamos ao culto aos domingos. Cumprimentamos os irmãos, louvamos a Deus, ouvimos a pregação, participamos da ceia. Saudamos com "A paz do Senhor!" e dizemos "Amém!". Mas cultos duram duas, três horas, no máximo. E depois? Depois é a escuridão da rua, quando no relógio são nove da noite. E amanhã é segunda-feira.

Onde é que estamos pisando? Se não perceberam, essa é uma questão de método. Viver é uma questão de método. Você para e analisa sobre o que tem se baseado. O filósofo pergunta quais são os pressupostos; a gente pergunta quais são as nossas crenças. Ou no que você confia, porque o conteúdo dessa resposta é o terreno sobre o qual você está caminhando (Mateus 7.24, 25).

Temos que fazer afirmações temerárias, do tipo que nos jogam lá pra frente, só pra então retornar procurando testar e fundamentar o que foi dito. O truque é saltar no escuro e se adiantar até uma distância a que só chegaríamos depois de muito tempo, se é que chegaríamos. Essas afirmações que por ora não podemos provar serem verdadeiras pelo menos nos fornecem uma direção. Já sabemos para onde ir. Pensar com ousadia é pensar como quem salta. E o salto é fé, que tem de ser criativa e imaginativa.

Ouvir a Palavra e praticá-la. O texto é o fundamento. Eis a parte do ouvir. Mas falta o praticar, que é quando botamos o texto em funcionamento. Tenta-se com isto ilustrar essa parte. Praticar a Palavra é atualizá-la, já que Jesus veio para todos e os discípulos já não são judeus nem vivem na Palestina sob César; já que se passaram dois mil anos e os discípulos somos nós. O "nós" é o principal aqui.

A quem está de fora eu só posso parafrasear Pascal e convidar a fazer uma aposta. Tudo começa com essa aposta.

2. Como ler isto aqui

Eu tenho algumas perguntas e por isso me sentei para escrever. São questões que eu queria já respondidas, e de um jeito que me cativasse. Por isso, no fundo estou escrevendo pra mim, mas outros lerão e se identificarão; Deus sabe que sim. A verdade é que não respondi nenhuma delas; no máximo, me aproximei de caminhos que levariam a respostas futuras, se é que existem. E não vou esgotar nada porque me falta paciência. E isso em acordo com o espírito da época, que é tudo menos exaustivo. Portanto, eis algumas reflexões preguiçosas, que outros desenvolvam se quiserem. É para isso que foram feitas – para fermentarem nas cabeças alheias. Façam disto uma desculpa para se sentar juntos e pensar a respeito. É o máximo que posso esperar.

Eu estou aqui em casa digitando coisas que discutimos juntos eu e outras pessoas e crendo que o que pensamos juntos, derivando-o das nossas experiências razoavelmente diversas, é um bom exemplo do que é ser cristão na prática. Nada muito glorioso, com fogo chovendo do céu e vozes tonitruantes; mas real – valor muito raro e portanto precioso em dias vendidos em embalagens contendo quatro unidades pelo preço de três.

Quero escrever para pessoas jovens, pessoas como eu, que cresceram num mundo refratário ao cristianismo. Um mundo onde os honestos buscam a indecência por se reconhecerem incapazes de ser decentes, e os desonestos se agarram à decência para sufocá-la com hipocrisia e moralismo. Estou à beira do manifesto, com palavras de ordem e tudo, mas calma.

3. Nós

Às vezes acho que a aspiração profunda da geração que nasceu em meados de 1980 é a de atualizar o mito de Ferris Bueller. A gente quer cedo ou tarde na vida protagonizar aquela famosa parada em que todo o mundo dança junto. É uma cena que se agarrou em nossas mentes e as fecundou com um milhão de possibilidades muito pouco práticas, e vagas, muito vagas.

A dura realidade é que a maioria de nossos sonhos são irrealizáveis porque são sonhos de desenho animado. Isso me dá medo. Pensar que a gente talvez nunca se satisfaça realmente em nada porque o que a gente quer não existe. Estamos condenados a girar no vácuo de desejos que nem o gênio da lâmpada pode realizar. Mesmo porque nem conseguimos fazer o pedido. É que não sabemos como verbalizá-lo.

Isso porque vivemos através da televisão. Crescemos vendo videoclipes e ouvindo música pop. Que tipo de mundo e visão de mundo a gente tira de videoclipes? É o mundo da publicidade. Instantâneos de uma história sem começo, meio e fim. Impressões e desejos sobre um mundo que não existe. Um dia isso foi a definição de arte. Agora eu não sei. Agora é só um desejo meio maluco de ser Mickey Mouse e se transformar no que a gente quiser.

Assustador é descobrir que você não é Ela – olhando pensativa pela janela do vagão de um metrô no meio da madrugada de um comercial de refrigerante – nem eu sou Ele – inteligente e charmoso como aquele personagem secundário num café cheio de gente numa cromática muito estilizada. E teremos que viver com isso. Nos contentar com isso. Nos convencer de que isso não é pouco demais.

Estamos divididos entre princípios e impulsos, entre valores e desejos. Os princípios e os valores são ideais que nos servem de norte. Eles nos fazem sonhar. São sonhos morais a partir dos quais se estruturam projetos de vida. É aonde queremos chegar como seres humanos. Ao passo que os impulsos e desejos são as necessidades que se impõem no plano mais imediato da existência e ameaçam comprometer os planos que fazemos a longo prazo. Na Bíblia esse conflito é referido como aquele que se estabelece entre o espírito e a carne (Romanos 8).

Falar em caráter é falar em princípios e valores. Ter caráter é agir em conformidade com eles. Mas, por isso mesmo, caráter é também, e na maioria das vezes principalmente, o resultado dos arrependimentos que acumulamos ao longo da vida por todas as vezes em que deixamos de lado princípios e valores para satisfazer impulsos e desejos.

Basicamente, buscamos emoções que exigem riscos que não queremos correr. E na impossibilidade de realizar nossas aspirações mais profundas – já que não passam de idealizações pouco claras e práticas – nos frustramos e isso é quase criminoso numa época em que ser feliz é uma ordem. Assim, tão logo percebamos que estamos frustrados ou em via de se frustrar arriscamos tudo por algo chamado SENSAÇÃO.

Não buscamos um conteúdo, mas uma experiência burra chamada de sensação, cujo único critério de avaliação é a intensidade. Quanto maior, melhor; quanto mais anestesiante, melhor. Drogas e sexo são os meios mais comuns e evidentes para se obter uma sensação; mas a própria sensação é o vício primordial do qual derivam todos os outros e nascido de um coração esvaziado.

O coração esvaziado é todo coração que não encontrou uma grande paixão ou interesse que o mobilize completamente e portanto é como aquela casa completamente limpa e desocupada, só esperando algum oportunista se instalar com as piores intenções possíveis (Mateus 12.43-45). A sensação é o espírito imundo que mais me preocupa atualmente; é ele que está sempre à espreita. Um amigo/irmão/cúmplice meu leu os rascunhos disto aqui e concluiu: a sensação é a tentação do século XXI. Parece comercial de desodorante, mas não deixa de ser verdade.

Pregadores argumentam. Pais argumentam. O bom-senso argumenta. Mas o que é um argumento frente a uma sensação? A única objeção a uma sensação é outra sensação ainda mais forte. A terra boa do argumento é uma cabeça pensante. Por isso o APELO GIGANTESCO que eu faço: pense. Se juventude e espontaneidade são ditas sinônimos, não esqueça, pelamor, que Homo sapiens e pensamento idem. Carpe diem não pode ser desculpa para deixar o cérebro num potinho em cima do criado-mudo e sair pra balada.

Pensar é pensar até o limite, quando você percebe que tem alguma coisa na escuridão, um vulto inapreensível. É o quartinho dos fundos que chamam de transcendente. Uns filósofos muito mal vistos costumam construí-lo na arte. Dizem eles que a arte é um acesso a algo que extrapola o domínio da razão. Eu mesmo já fiz essa experiência com, por exemplo, a pintura de Mark Rothko, um abstracionista russo, naturalizado americano. Aqueles enormes retângulos chapados apontam para alguma coisa que está e não está ali, inefável, alguma coisa além. Como um crítico de arte disse, parecem uma janela para o Eterno. Fica faltando determinar esse Eterno. Aí entra Jesus, que lhe dá um rosto e uma presença (João 14.8, 9). Assim dizemos os cristãos. Faça a aposta.

4. Camarada Vida

O evangelho fala da vida. É uma historinha que fala da vida justamente pelo fato de ser uma historinha. Historinhas são poderosas para esclarecer o que é a vida. Quando somos crianças, o mundo começa a fazer sentido se algum adulto tem a bondade de nos contar uma historinha.

Eugene Peterson diz que o bom da historinha é que não dá pra manter distância diante dela, que nos envolve, e assim somos obrigados a assumir uma posição. Ela nos força à ética. Eis o principal no evangelho – o momento da decisão, que é um momento ético, quando dizemos sim ao que se obrigou ser reconhecido, e se reconheceu como certo – e portanto o principal na vida, que já não pode correr a esmo.

Mas aí a gente cresce e deixa de ouvir e contar historinhas, não porque já não precisa delas, mas porque já não pensa na vida, já não acha que precisa entender o que é o mundo. Adultos se acham muito espertos, porque viveram muito, têm empregos, bocas para alimentar e posições para conquistar. São muito ocupados e têm muitas responsabilidades, mas não pensam no principal, que é a vida, que corre a esmo.

Por isso é que Jesus diz que é preciso se tornar uma criança para herdar o reino dos céus (Mateus 18.3). Porque é preciso voltar a pensar na vida. E tudo fica grande demais – metafísico demais – quando você emprega a palavra vida do jeito certo. Geralmente o momento é acompanhado de um grande suspiro porque a vida de que se fala – a única vida da qual se pode falar, aliás – é a sua própria vida.

Eu estou falando da minha própria vida quando falo e isso é muito importante. É uma garantia a mais de que estou interessado em resolver as questões que proponho, já que me afetam diretamente. Também significa que estou sendo honesto quando digo que não sei metade das respostas e que dá pra viver sem saber, mas não sem perguntar. É o que precisamos entender a respeito do mistério que nos apanha tão logo nos ergamos neste mundo: que nos cabe não ser indiferentes e seguir perguntando. Só a indiferença nos condenará.

Ser feio, gordo e pobre é uma derrota de nascença segundo os valores da sociedade na qual vivemos. Se você é feio, gordo e pobre, está condenado a ser infeliz. Quem pergunta para quê serve ler um poema ou estudar filosofia deveria também perguntar para quê serve estar vivo. A lógica é a mesma. Ou as coisas são funcionais, ou não valem nada. Desempenho é a palavra de ordem em todos os aspectos da vida.

As coisas não têm valor em si mesmas. Mesmo porque não existe nada ou ninguém que contradiga esta sociedade ressignificando as coisas a fim de dar a cada uma delas o devido valor. É no mínimo sinal de bom-senso desconfiar de que algo está muito errado nisso tudo. E é justamente a constatação de que as coisas não vão bem que nos conduz a perguntar pela própria vida. Essa é a hora dos perdedores.

Num mundo altamente competitivo, no qual as relações sociais são pautadas pelo mérito, Jesus é antiprodutivo. Jesus não é lucrativo. Jesus é a pedra no meio do caminho (Mateus 21.42-44). Porque ele veio para os perdedores. Isto está em 1 Coríntios 1.26 a 29: “Irmãos, pensem no que vocês eram quando foram chamados. Poucos eram sábios segundo os padrões humanos; poucos eram poderosos; poucos eram de nobre nascimento. Mas Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os sábios, e escolheu o que para o mundo é fraqueza para envergonhar o que é forte. Ele escolheu o que para o mundo é insignificante, desprezado e o que nada é, para reduzir a nada o que é, a fim de que ninguém se vanglorie diante dele.”

E em Lucas 7.22: “Então ele respondeu: Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos veem, os aleijados andam, os mortos são ressuscitados e as boas novas são pregadas aos pobres.” Quer dizer, Jesus pega todo o sistema de valores vigente e inverte. Por isso Nietzsche, que dizia que o cristianismo é uma religião de e para escravos, e outros espíritos aristocráticos não engolem o evangelho, que acusam de promover a fraqueza. Exatamente. Mas é a fraqueza que nos torna mais fortes que nunca. No verso 23 do mesmo capítulo 7, Jesus conclui: “E feliz é aquele que não se escandaliza por minha causa.” Nietzsche se escandalizou. Muita gente tem se escandalizado. Este é o evangelho.

5. Felicidade

A gente vive uma vida burra, cheia de automatismos, batendo cartão e apertando gatilhos. Sexo é só mais uma questão burocrática ou mecânica. O kitsch da experiência. Conseguimos transformar o essencial numa coisa de mau-gosto. Libertários que somos, transformamos o corpo num escravo do que NOS DISSERAM que é a felicidade. Algo que envolve domir e comer mal, e fazer sexo de qualquer jeito.

Somos muito inteligentes e perspicazes, podemos construir coisas engenhosas, divertidíssimas, explicar ideias complexas e até ensaiar sistemas metafísicos inteiros, mas o fato é que há muito perdemos nossos corações. Não se trata de uma reinvidicação romântica, a primazia do sentimento sobre a razão, sem descuidar da razão. Estou falando daquela dissociação terrível em tudo o que fazemos, nossa incapacidade crônica de emprestar sentido ao mais simples gesto, resultando em vidas vazias, sem propósito. O que eu estou fazendo nunca é o que eu realmente queria fazer. Então passamos adiante tentando esgotar todas as possibilidades e nos convencer de que isto é viver intensamente.

Nossa pobreza consiste em achar que a vida depende de uma coisa só, sem a qual seremos infelizes para sempre. Costumamos fazer isso com sexo ou dinheiro. Isso porque nos rendemos. Desistimos de pensar com ousadia e de ser criativos e inventar a nós mesmos porque nós nos adequamos; porque é com desespero e atropelo que avançamos sobre as pessoas e as coisas buscando nos ajustar ao que NOS DISSERAM que é felicidade.

Eu não acredito na felicidade; eu não quero acreditar na felicidade. A felicidade é uma coisa que nos mandaram buscar. E no caminho faremos muita gente infeliz em nome dela. É um objetivo muito pequeno. Sobretudo muito vago. O que isso significa?

Uma regra fundamental da redação jornalística é referir fatos e portanto ser concreto ao escrever. Porque as pessoas têm pressa e querem saber o essencial quando leem o jornal. Também nós precisamos ser concretos ao responder questões de que, er, depende nossa vida. E se pergunto o que você quer da vida e você diz que só quer ser feliz, sinto muito, mas tenho que perguntar o que você quer dizer com isso. Porque eu não sei (e garanto que você também não sabe). E olha que eu também quero ser feliz. Mas sei que isso é consequência de alguma coisa. Então é essa alguma coisa que importa. Ela é a causa da minha felicidade.

6. Não faça sexo

Para o ouvido humano normal sexo é fazer sexo. A distinção se perdeu. O milagre que eu me proponho realizar agora é resgatá-la na frente de todo o mundo. Sexo é a coisa mais importante do mundo; fazer sexo não.

Fazer sexo não é tão importante quanto se imagina. Quanto se imagina: porque se imagina que seja tão importante quanto a vida. E a vida é maior e mais rica que isso. Fazer sexo é só uma parte dela. Vou chutar uma porcentagem: 10% dela? E é muito. Porque a vida verdadeira inclui sol, crianças, pão com manteiga, dormir no meio da tarde, rir com os amigos, conversar até tarde, jogar bola, escrever cartas de amor (bem ridículas), abraçar mamãe, ser mamãe, deitar na rede, balançar na rede, dividir um sanduíche, matar a sede com Coca-Cola num domingo de janeiro, correr muito rápido e se cansar e recuperar o fôlego, andar na montanha-russa, abrir juntos uma caixa de bombom, dançar, pizza, viajar incógnito, muito cinema, muito chocolate, adormecer escutando a chuva na janela, amanhecer na casa dos amigos, ler revistas, inventar e contar histórias, sorvete, desenhar, sonhar com a eternidade, sonhar com justiça e paz, desenhar sem saber desenhar, cantar debaixo do chuveiro, fazer e sentir cócegas, se molhar quando não se pode e/ou quando se quer, ajudar as pessoas de boa e má vontade, ser decente, se sacrificar, chorar, vencer, perder, aceitar, etc e tal.

Deveria ser óbvio: mas se a Bíblia diz que tem gente que escolhe não fazer, então sexo é opcional (Mateus 19.12). Muita gente vive sem e pode viver mal ou bem. Mas tem gente que vive muito mal com sexo e tudo; às vezes por causa do sexo e tudo. Porque a verdade é que não existe regra nisso nem uma normalidade tirânica que mande que sejamos campões na cama, do contrário estaremos condenados à infelicidade eterna. Isso deveria ser óbvio.

Sexo é sexualidade, e sexualidade é um fato. O desejo é um fato. A energia sexual é algo que nos percorre o dia todo, o indivíduo fazendo sexo ou não. A sexualidade nos define a ponto de devermos nos dizer seres sexuais. E sem qualquer exagero. A energia sexual é simplesmente energia vital, ou energia da vida. E se estou pensando e falando da vida, nesse ponto descubro que tenho que, para isso, pensar e falar de sexo.

Se a vida é sexo, então sexo tem que ser muito mais do que aquilo que imaginamos que é. Este é o ponto. Estou afirmando que a vida precisa ser pensada. Então. E portanto não só ela. Sexo precisa ser pensado. Deus precisa ser pensado. E os dois ao mesmo tempo se somos realmente cristãos. Porque cristão é o indivíduo que envolve Deus em tudo; que chama Deus à vida (entenda-se: ele só é um Deus vivo se faz parte da minha vida). Sendo que a pergunta teológica mais simples e direta não tem sido feita e é a seguinte: em que medida o sexo (desde a sexualidade em si até o ato sexual) revela a natureza de Deus?

A antropologia aí está para dizer que a base da sociabilidade é o sexo. É ele que nos tira do isolamento e nos leva ao encontro do outro. Nós nos buscamos impulsionados pela atração sexual. A ideia de comunhão define sexo. Aliás, define outra coisa: a igreja, e a igreja como o relacionamento que temos com Cristo, de lhe sermos corpo. Sexo possibilita o encontro e a comunhão. Em essência, aponta portanto para alguma coisa muito além: expressa o que é ser corpo de Cristo, isto é, ser igreja (Efésios 5.31, 32).

Assim é que fazer sexo precisa ganhar um sentido maior que o de mera satisfação fisiológica ou de passatempo no fim de semana. É diversão e jogo. Isso todos reconhecemos. Mas é muito mais. Diversão e jogo são muito mais. O sexo expressa nossa natureza íntima na medida em que somos seres sexuais. Respeitar nossa sexualidade exige, portanto, começar a pensar que tipo de sexo temos feito.

Quem reduz a vida a fazer sexo certamente tem em vista uma concepção de sexo muito chinfrim. Mas eu mesmo sou muito ortodoxo quanto a fazer sexo. Basicamente não vale o sacrifício. Só porque a gente não assume ou mesmo reconhece que envolve muita responsabilidade não significa que ela não exista. No fim só aumenta nossa insatisfação com o outro, consigo mesmo e com a vida.

Uma teologia do sexo é uma teologia do amor. Fala de intimidade, relacionamento, sensibilidade, expressão. Finalmente vivemos num mundo em que as pessoas se tocam (estou sendo positivo e otimista). Precisamos pensar uma teologia de pessoas que se apreciem. Pessoas que entendam a diversidade de opiniões e escolhas, pessoas que busquem a diversidade. Propor uma teologia do sexo é afirmar que sexo é muito importante.

Uma vida sem propósito não desperta grandes paixões e exige muito pouco da gente, ainda que pareça e de fato seja tão cansativa de ser vivida. Mas na realidade os dias se passam com a gente sempre com a cabeça nas alturas sonhando com uma vida que não existe. Fazemos tudo de qualquer jeito. Investimos muito pouco no cotidiano, que detestamos, porque não parece ir a lugar nenhum, e não vai mesmo. Mas o sexo. No ato sexual nos achamos investindo tudo de que dispomos. É o que se espera e é o que esperamos. É o grande momento das nossas vidas, no qual finalmente nos entregamos. Mas a vida toda deveria ser assim; essa é que é a verdade.

7. Salvo!

Eu não sei quem vai pro céu. Discutir a salvação alheia geralmente serve apenas para assinalar uma suposta nobreza espiritual dos debatedores, coincidentemente sempre salvos. Às vezes sinto que não é salvação que está em jogo. Que salvação é mera consequência da vida verdadeira e não o contrário. Salvação seria apenas a coroação de um processo. Isso é naturalmente discordar da maioria dos manuais de teologia, que assinalam a salvação como um fato pontual. Deus vindo e tocando no alto de nossas cabeças com a varinha de condão e daí em diante nos capacitando a ser santos.

Mas vou me permitir essa inversão se ela colocar em primeiro plano a discussão dos valores. Estou agora interessado na seguinte oposição que me parece ser a essência do evangelho: vida verdadeira versus vida falsificada. Estamos falando de valores. Trocar os valores falsos pelos verdadeiros e parar de basear a própria vida em ilusões que não satisfazem. O evangelho é a feição mais acabada da vida verdadeira. É sua sistematização.

Você não precisa nem deve ler isto se for santo ou pecador. Na verdade acho que ninguém a não ser eu deveria lê-lo. No fundo foi escrito só pra mim. Mas esse “eu” e esse “mim” têm uma capacidade muito curiosa de se disfarçar de quem quiserem – inclusive de você.

Minha intenção é acabar com todas as dualidades existentes neste mundo prontas para cortarem cabeças descuidadas. Eis o sentido do alerta acima. Santo ou pecador, salvo ou perdido. Todas essas coisas não me importam. Todas essas coisas caem no momento em que Jesus entra em cena e introduz ele mesmo uma nova e única e suficiente dualidade: em mim ou fora de mim (João 15.1-7). É como um círculo no chão que as crianças, brincando, marcam a giz e quem pisa ali dentro já não pode ser apanhado porque está salvo. Aquele círculo de giz é Jesus. É pisar e gritar “Salvo!”. Pois você deve ou deveria ter lido em Romanos que já não há condenação alguma para quem está em Cristo Jesus (Romanos 8.1). No dia do Juízo Final, a gente é café com leite.

Não haver condenação é o mesmo que haver plena aprovação. E isto é a graça. A plena aprovação de quem eu sou. Experimentar a graça é descobrir-se simplesmente justificado em todos os sentidos. É a absurda consciência e sensação de que se é perfeito. Ou seja, eu não preciso mudar em nada para ser completamente aceito. Imagine as consequências dessa afirmação. Vejo pessoas correndo peladas pela rua, vejo o caos, vejo o fim dos tempos.

Mas não se trata de pregar uma vida irrefletida e irresponsável; mas de enterrar, de uma vez por todas, o desejo de se autojustificar. Dar um fim à justiça própria (Filipenses 3.9). Existe uma palavra central na vida cristã: milagre. O milagre é a natureza íntima de tudo o que acontece na nova vida em Cristo. Isso se harmoniza perfeitamente com o conceito de graça. E o milagre é que agora mesmo eu sou tudo o que Deus quer que eu seja.

A perfeição é um dom; não é resultado de esforço, nem uma conquista. É preciso se satisfazer com tudo que não seja a perfeição, parafraseando C. S. Lewis. A perfeição tornou-se uma armadilha demoníaca, com duas expressões bastante comuns e perfeitamente harmoniosas entre si: o moralismo e a vaidade. A ambição e competitividade no trabalho e as convenções sociais excludentes que envernizam o santarrão hipócrita são os exemplos mais imediatos de uma vida certinha.

E olha que eu até aprovo a vida certinha no que ela tem de discreta e resistente a modismos que só mostram que a gente ainda não sabe que Jesus mora no apartamento da frente. Mas a vida certinha é um dos argumentos mais antigos e surrados que se levantam contra os esquisitos de Jesus. E só hoje eu quero que os esquisitos de Jesus tenham a razão e sejam a porta estreita, porque a porta estreita é a porta dos esquisitos. É a porta para a qual sempre se olha com olho torto, porque ela fica no cantinho e é, bom, muito estreita, poxa.

8. Ele ou o grande YOU desconhecido

Nós nascidos em meados dos anos 1980 e agora com vinte e poucos anos. Que temos a dizer sobre Jesus? O que nos parece importante em sua vida e personalidade? O que ele nos diz – mas principalmente o que dizemos a ele?

O evangelho pede ser recontado por nós e com os nossos próprios recursos. O resultado é simplesmente a nossa espiritualidade. É a oportunidade de se ver refletido – espiritualmente – na imagem que temos de Cristo, contanto que sejamos honestos. Espiritualidade cristã, especificamente cristã, é o que se pensa de Cristo.

Ele é homem. Ele é descendente de Davi. Ele é o Messias. Ele é o Filho de Deus. São as identidades de Jesus que os quatro evangelhos canônicos estão interessados em nos apresentar. São realmente importantes. Dados fundamentais. Mas o que dizemos nós de Jesus? Os quatro evangelhos foram escritos por uma geração que precisava ouvir o que lá está escrito da forma como está escrito.

Jesus é homem e Jesus é Deus. É o mais próximo mais distante. É o paradoxo encarnado. O paradoxo como milagre. O paradoxo como natureza de Deus. Aí fica mais fácil entender a vida. Só o paradoxo salva, o que equivale a dizer que a essência do pensamento deve ser o paradoxo se quisermos chegar à verdade. E aqui se trata de pensar.

Acho que o paradoxo é um estado de coisas que satisfaz plenamente o coração e a mente – a mente que se volta ao mistério. O paradoxo é o invisível acenando para nós com uma resposta. É a complexidade das realidades espirituais sob uma forma racional e, por isso mesmo e ao mesmo tempo, a razão tensionada até o limite, até quase deixar de ser racional.

Certamente não queremos ser canônicos, mas em certo sentido acabaremos sendo se formos sinceros em buscar a Deus e honestos ao falar dessa busca e do Deus que temos encontrado. O evangelho começa quando estivermos dispostos a dar a nossa versão da história.

O que eu sei preliminarmente? Que Jesus tem que ser um de nós. Quando moleque escrevi algumas palavras sobre como eu achava que um herói deveria ser, um herói à imagem e semelhança da nossa época, e que recuperei aqui do meu computador e acho bom citá-las por serem estranhamente convenientes. Alguns detalhes precisariam ser modificados, mas o espírito do todo é surpreendentemente religioso, apontando inconscientemente para Cristo. Não é uma cristologia, mas apenas um anseio bem sentimental e portanto impreciso.

Acreditemos na sinceridade do Autor aos 15 aqui e ali modificada pelo Autor aos 26:

Alguém que viva humildemente entre nós e que possamos muito bem encontrar no supermercado do bairro, mas que tenha dentro de si esse poder de nos salvar. Alguém muito parecido com a gente e por isso muito próximo, mas, ao mesmo tempo e por toda a vida, distante de nós. E na distância ele realiza nosso sonho de sermos melhores. E é justamente isso o que ele significa para nós.

Seus inimigos não existem em função dele, como meios de destacar suas virtudes, mas são nossos inimigos, gente que sempre nos maltratou e nos feriu. Ele veio nos salvar do mal, que, em nossas vidas, se manifestou como violência, abandono, indiferença, medo e alienação. Ele nos protege, luta com o estuprador e com o espancador. E quando luta, ele sofre muito. Essa é a diferença; é a vida real. E ele apanha e se machuca, quase morre, mas vence no final. Sempre é assim. Nossa salvação lhe custa todos os dias sua própria vida.

Não queremos mais um herói para quem nossas vidas sejam valiosas só por alguma noção humanitária totalmente impessoal. Mas queremos que ele nos salve, sabendo quem somos, sabendo que muitas vezes nos acovardamos e fugimos do mal. Ele, afinal, nasceu com a gente; como se um de nós ascendesse aos céus.

Principalmente queremos que ele chore e respire profundamente e possamos ouvi-lo. Porque saberemos que, ainda que ele tenha ido tão longe e nos deixado para trás, continua sendo humano. Então, o abraçaremos e ele não se sentirá sozinho.

No Getsêmani Jesus velando e os discípulos dormindo (Mateus 26.40). Há mais de dois mil anos que fizemos a promessa de abraçá-lo e estar com ele e não a temos cumprido. Este é o evangelho.

Jesus pode ser abraçado, mas principalmente – Jesus pode abraçar. Deus costumava ser uma ideia, a melhor das ideias. Agora, é simplesmente um homem. Finalmente um homem. Conhecer Jesus é conhecer Deus como pessoa. É falar com Deus como se a gente estivesse falando com o amigo mais íntimo (Êxodo 33.11). Porque o amigo íntimo é aquele que nos ouve e diz “Eu também”. Jesus é o “Eu também” de Deus à dor e à miséria de ser homem. É ele o “you” de todas as canções de amor que cantamos. Eis uma prova de que temos transferido grande parte das nossas expectativas – que no fundo são espirituais – para o chamado amor romântico.

Temos sobrecarregado o outro – às vezes você, às vezes eu – com insatisfações pessoais das quais só o grande YOU desconhecido pode dar conta. Transformamos um anseio essencialmente espiritual e o desejo de mergulhar a vida em algo indescritível num encontro romântico. É pedir demais para pessoas tão incompletas e inseguras como nós. “I’ve been waiting for a guide to come and take me by the hand”, dizem os versos iniciais de “Disorder”, do Joy Division. Agora vem a aposta.

9. Não vá à igreja

Meu segredo é que estamos conspirando e que isto aqui é um manual do conspirador ou um folheto para quem estiver disposto a, ao menor sinal, derrubar o templo e reconstruí-lo em três dias, mas reconstruí-lo todo ao contrário, com a porta onde fica a janela, e a janela onde fica a porta.

Disseram pra mim que estamos numa transição, logo nós. Esta geração está cansada dos televangelistas e do materialismo da teologia da prosperidade que pregam. Esta geração está cansada do formato tão, er, consagrado do templo e anda sonhando com a comunidade cristã primitiva, que se reunia em casas. O problema do templo é que ele concentra toda a santidade em si e o resto do mundo deixa de ser santo. E Cristo veio santificar a vida como um todo (João 4.20-24). Mas a comunidade cristã primitiva é mesmo um horizonte possível? Voltar é possível?

Números não dizem nada. Caravanas de evangelismo são uma imagem triunfal de um desenvolvimento que nunca acontece. Interessa é saber, dos milhares que se convertem, ou supostamente se convertem, quantos permanecem e como permanecem. Às vezes acho que os jovens que estão na igreja estão na igreja porque não são jovens, porque tiveram que se adaptar e passar a pensar como velhos. Porque só uma mentalidade velha, e não ortodoxa, ou cristã, mas apenas velha, faz permanecer na igreja como ela é, de maneira geral, atualmente. Só não sei se pensam como velhos para não escandalizar os velhos ou porque se deixaram fossilizar.

Então eu tenho que perguntar como temos permanecido na igreja nós que temos permanecido na igreja.

A igreja não está em crise. Antes estivesse. Só uma parte dela está. Estar em crise é bom. Crise implica reflexão e amadurecimento. É sinal de vida; e vida inteligente. Só o que está morto não entra em crise. Inclusive ou principalmente quando está cerebralmente morto.

A parte que está em crise está em crise por causa da parte que não está em crise. Porque a fé cristã existe pra colocar as pessoas e as coisas em crise (Lucas 18.18-23). Nas aulas de História a gente aprende que o Império Romano do Ocidente entrou em crise e acabou. Uma das coisas que o fez entrar em crise foi o cristianismo.

A gente entra em crise quando alguma coisa que costumava ser certa passa a nos parecer errada. Ora, é mais ou menos isso que quer dizer arrependimento. A diferença é que o arrependimento é quando essa alguma coisa é a própria vida. A vida que costumava ser certa passa a parecer errada. Não existe maior crise que essa. E só há uma maneira de enfrentá-la e crescer: convertendo-se.

A conversão é o resultado da mais importante crise que alguém pode ter nessa vida. O problema é que a conversão é só o começo. A ideia toda do cristianismo é que, a partir do momento em que você entrou em crise e se converteu, vai ter que continuar entrando em crise até morrer. Quem não entra em crise não cresce. A fé cristã só é real quando produz crescimento. É aquela história da árvore e de seus frutos. Tem que frutificar (João 15.2).

Por isso é que a parte da igreja que está em crise está em crise por causa da parte que não está. A parte que não está em crise está na verdade ameaçada de deixar de fazer parte da igreja. Corre o risco de deixar de ser igreja. Claro que isso facilitaria as coisas. A gente poderia suspirar e dizer que Deus separou o joio do trigo. É a teologia da comodidade. Tem muitas vertentes. A gente escolhe a que for conveniente.

Mas aí seria a parte que está em crise que deixaria de estar em crise por não se importar com que a parte que não estava em crise tenha deixado de fazer parte, e assim a parte que está em crise também deixaria de fazer parte por ter deixado de estar em crise. E seria muito bem feito.

O fato é que estar em crise significa que você se importa. Importar-se é uma das grandes virtudes esquecidas do cristianismo. Isso e humildade. Importar-se é não se contentar com como as coisas são. Porque as coisas são ruins.

Somos uma geração perdida para uma igreja que voltou as costas para nós na medida em que insiste em manter as coisas como estão. O único modelo que garante a saúde da igreja é aquele originalmente proposto para o sucesso do socialismo. E é o da revolução permanente, que é o da crise permanente. Parar é se calar e se conformar.

Aqueles que se identificam com os anseios desta geração e que estão na igreja apesar da igreja vivem um paradoxo: o de ser a igreja na igreja, ou pior – ser a igreja sem igreja. Como alguém me disse quando eu comentava essas questões, estamos na igreja, mas não somos a igreja. Encarnamos o modelo do astronauta gravitando em torno da espaçonave ligado apenas por um cabo que nos fornece oxigênio. Mas o fato é que quem se esforça para que ainda tenhamos esse fornecimento de oxigênio é Deus. Porque lá dentro da nave estão todos entretidos com o culto.

Nosso risco constante é passar do astronauta ao náufrago. O astronauta não está perdido. Ele tem consciência de que precisa da espaçonave e de que tanto ele quanto os que estão dentro da espaçonave não estão em casa, mas a caminho dela. O astronauta sabe para onde está indo. Muito diferente é o náufrago, que está à deriva. Talvez o continente esteja ali, a alguns poucos quilômetros dele, mas como ele poderia saber? Afinal, ele se desloca ao sabor das ondas sem saber aonde isso vai dar.

A primeira coisa que me vem a cabeça quando penso em por que nos achamos nessa situação é que senso de realidade é agora incredulidade e que o mundo para o qual a igreja prega é muito parecido com um shopping. Pensar em indivíduos em vez de números é não ter visão espiritual. Em vez de discipular pessoas que conhecemos pelo nome, planeja-se a vida espiritual da igreja em planilhas que calculam o crescimento númerico da igreja em função das contribuições financeiras e do coeficiente espiritual, seja lá o que isso significa.

10. Vá à igreja, mas não me chame

A parábola do filho pródigo é uma excelente radiografia do coração humano em sua cegueira à realidade generosa do perdão. Uma parte do evangelho fala ao filho pródigo, que se foi; outra fala ao filho mais velho, que ficou. O problema do filho pródigo é que, quando ele volta, não volta só para o pai – mas também para seu irmão. Então o problema do filho pródigo passa a ser o filho mais velho, para quem o problema passa a ser o filho pródigo. Esse estranhamento todo se chama família ou igreja.

A igreja é uma comunidade de perdão. Risos. A família só é família porque nela existe o perdão. Todo o mundo falha com todo o mundo, mas, como é família, perdoa-se, e vamos adiante. Essa é a lógica, que privilegia a pessoa em detrimento do erro e da culpa. É a lógica do perdão. Família é uma coisa que obriga o perdão, que não existe no mundo, então tem que existir em algum lugar, meu Deus.

Quem aceita a aposta tem que ir à igreja. Quer dizer, tem que voltar pra casa. Era filho pródigo e resolveu voltar. Nascemos ovelhas desgarradas ou é a vida que nos desgarra ano após ano. Sinceramente, a igreja é uma provação, porque família é uma provação. A melhor coisa do mundo não é a melhor coisa do mundo. Sobrevivemos graças à nossa família e apesar dela. O mesmo vale para a igreja. E a igreja quem faz somos nós.

Famílias precisam de diálogo. A televisão e o computador acabaram com o diálogo. É o fim da comunhão. É o fim da família. Essa cartilha nós conhecemos. E ela também vale com a igreja. Só que a televisão da igreja é o púlpito. Todo o mundo sentado assistindo. Mas não tem diálogo, não profundo, porque falta espontaneidade, e portanto interesse real, e sobra obrigação.

A família e a igreja precisam se reinventar sob o signo da amizade. Devemos tomar João 15.13 a 15 como modelo de nossa vivência em comunidade: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a sua vida pelos seus amigos. Vocês serão meus amigos se fizerem o que eu lhes ordeno. Já não os chamo servos, porque o servo não sabe o que o seu senhor faz. Em vez disso, eu os tenho chamado amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai eu lhes tornei conhecido.”

Partilhar e sacrificar-se são coisas que fazemos espontaneamente quando se trata de amigos. Jesus partilhou com eles o que o Pai lhe dizia. E, no final, Jesus morreu por seus amigos. Ou melhor, por aqueles que ele fez amigos seus. Paulo escreve que éramos inimigos de Deus, mas que Cristo veio acabar com essa inimizade (Romanos 5.8-10). A cruz é o sacrifício da amizade.

Nosso dever, neste mundo, é santificar a vida, o que é bem mais simples e cotidiano que pensamos. Todo gesto que humaniza redime. Nesse sentido, a amizade é um sacerdócio. Em Lucas 22.28, Jesus diz, na intimidade da última ceia com seus discípulos: “Vocês são os que têm permanecido ao meu lado durante as minhas provações.” Somos santos por pouco, quando vacilamos. A miudeza então se abre como o momento da epifania. E a religião invade a vida em sua inteireza.

Relaxemos e sejamos santos sendo absolutamente humanos ao acolher as pessoas. Fomos criados para o encontro e há muito que nos esperam – e que só aumentamos nosso atraso – porque temos tanto a tratar com nós mesmos ou tanto a melhorar para sermos capazes de estender a mão. Mas para estender a mão, basta estender a mão.

A conversa é o grande sacerdócio ou ministério esquecido. Que nos sentemos e conversemos uns com os outros; que conversemos com as pessoas, e algo vai acontecer. Que ouçamos – ouçamos muito – e depois falemos. Isto é simples e também é evangelho. Apreciemos as pessoas e adiemos tanto quanto possamos a pregação se isto quer dizer que vamos começar a persuadir. Chega de persuasão. Chega de ser advogado, pastor, professor, profeta, vendedor, publicitário e ator. Tentemos um papel ou profissão diferentes; tentemos ser seres humanos e ver no que dá.

Primeiramente sejamos amigos uns dos outros antes mesmo de sermos irmãos em Cristo. Até hoje não sei o que isso significa na prática. Quer dizer que não preciso pregar para você porque você já foi pego? Mas se você fosse simplesmente meu amigo, então eu saberia o que esperar de você. Eu te procuraria e você me procuraria. E sabe o que faríamos a maior parte do tempo, sendo amigos? Nós conversaríamos. Porque conversar é ter comunhão. E quem tem comunhão é um. Minha definição de igreja de hoje é: pessoas que conversam entre si porque, antes de tudo, conversam com Jesus; igreja é uma comunidade de bate-papo. É um chat gigante.

Conversando, seremos salvos, e de bem mais coisas que a condenação eterna. Para começar: seremos salvos de ser uns chatos. Porque chato é sempre o cara que não sabe que é chato porque vive tão envolvido consigo mesmo que não enxerga mais nada, mas conversa é diálogo. Assim: você fala e eu escuto, depois eu falo e você escuta. Tem gente que pensa que é assim: eu falo e você escuta, depois você escuta e eu falo.

A realidade a que corresponde a igreja é a mesma da Encarnação e portanto um dos fatos mais bonitos da existência e que se pode resumir assim: estamos juntos nessa. A igreja é a instituição do suportai-vos uns aos outros; uma longa caminhada conjunta rumo à eternidade, e se eu cair, você me levanta e vice-versa.

11. Como se faz

O Sermão do Monte é a grande perspectiva graças à qual se pode arejar esta vida sufocada. É uma ética – uma visão muito concreta, muito prática, de como a vida deve ser – e portanto um COMO SE FAZ. É o ideal a que nos dirigimos em nossa caminhada espiritual. O que nos define como seres humanos é que estamos a caminho. Então precisamos reescrever suas palavras continuamente e pessoalmente. Você precisa ter seu own private Sermão do Monte atualizado conforme sua experiência cristã particular, que, porque é cristã, não deixa de ser uma experiência com muito mais gente, uma experiência em e da comunidade.

As bem-aventuranças, ou mais-que-felicidades, repousam sobre aqueles que o mundo considera desventurados ou infelizes. É o discurso das inversões. É Deus abençoando quem é maldito.

Bem-aventurados os idealistas, porque serão mal pagos, mal pagos e livres. Talvez morram de fome, essa é definitivamente uma possibilidade, ou vivam mal, que é quase uma certeza, com roupas feias e sapatos gastos, mas terão princípios e falarão em princípios – sem ser ouvidos (Eclesiastes 9.16). Pois o idealismo é o caminho mais rápido pra indigência.

Bem-aventurados os inseguros, porque é sinal de que são inteligentes. Baixa autoestima, quando jovem, não é nada senão inteligência, uma garantia dela, como um selo ou sinal na testa, que homens mais velhos enxergam, consolando-se de também terem sido assim e, graças a Deus, superado essa fase.

Bem-aventurados os que não têm razão nem se preocupam em tê-la, porque o que mais lhes interessa é serem honestos consigo mesmos e admitirem que só se pode saber quando de saber depende a nossa própria pele.

Bem-aventurados os que não sofrem de burocracia mental e estão dispostos a ouvir e apreciar os demais e abraçar a diversidade. Eles se guardam de condenar quem Deus não condena. E Deus não condena ninguém (João 3.17; 2 Coríntios 5.19).

Bem-aventurados os indignados, porque morrerão do coração e descobrirão que eram justos por cobrarem justiça de um mundo injusto. Não se deixaram amortecer pelo bom-senso nem se recolheram com sono quando ainda era dia.

Bem-aventurados os que permanecem na igreja, porque não permanecem por si mesmos, mas por aqueles que precisam permanecer, seja pelos que já permanecem, seja pelos que virão a permanecer. Graças a eles, um dia a igreja será perfeita, quando eles estiverem mortos.

Bem-aventurados os esquisitos, porque não se adequaram para satisfazer homens e assim satisfizeram a Deus, que é o que importa, como está escrito (Atos 5.29). Viverão como aqueles que satisfizeram a si mesmos, porque assim são os homens, quando não os satisfazemos como querem, eles nos condenam e aí fica tudo bem.

Bem-aventurados os clandestinos, porque não querem escandalizar aqueles que já os condenaram. Pensando o que pensam em secreto, descobriram que só pensam aqueles que pensam em secreto, porque pensar sempre escandaliza. Até quando professaremos nossa fé às escondidas; até quando seremos cristãos marginalmente, nos cantinhos onde ninguém repara e onde a poeira se acumula; até quando seremos clandestinos?

12. Fim ou e agora?

Todos quantos me entenderam só poderão concluir que eles mesmos deveriam ter escrito isto aqui – este evangelho – e que, se ainda não o fizeram, precisam começar agora. Porque esta é uma obra coletiva.

Voz que reclama

Bem-aventurados