Muita
gente, cristãos e não cristãos, acha que o esvaziamento das igrejas europeias
se deve a uma vitória do esclarecimento (ou da incredulidade, conforme a
perspectiva cristã) sobre as trevas da ignorância (ou a piedade da fé).
Trata-se de uma análise equivocada. Secularismo, feminismo, evolucionismo,
ateísmo, comunismo: nenhum deles é o maior inimigo da igreja. Nós não
precisamos nos preocupar com os homossexuais nem com as mulatas do samba. Os
regimes políticos não podem nos calar ou nos amedrontar. Darwin e Freud não
esvaziam igrejas.
Nosso
maior inimigo somos nós mesmos. Porque, como religiosos, somos constantemente
tentados a ceder ao moralismo em nome da preservação dos bons costumes. E não
existe nada mais contrário ao evangelho que o moralismo. O moralismo é a falsa
religião por excelência, que afasta as pessoas do Deus verdadeiro. Ele resume
tudo aquilo que pensamos ser a verdadeira religião. Ora, o ensino de Jesus
consistia em mostrar como nós, homens, não sabemos nada a respeito da
verdadeira religião; que somos péssimos fundadores de religião.
O
moralismo é uma espécie de autoengano pelo qual alimentamos a ilusão de que
estamos em dia com aquilo de que acusamos o outro, isso porque nunca paramos
seriamente para pensar se realmente estamos em dia. O moralismo é o
próprio adiamento da prestação pessoal de contas. Acabamos envolvidos nesse
jogo no qual, para fugir de nós mesmos e do reconhecimento das nossas
persistentes mazelas pessoais, procuramos um bode expiatório, alguém
aparentemente mais sujo que nós. A regra do jogo é essa: ache alguém mais
culpado, isto é, alguém com cara de culpado. Por isso o moralista é também
conhecido como certinho, santinho e beato. Aos olhos de Deus, o moralista é o
pecador que penteia o cabelo e sempre anda com a camisa dentro da calça. É como
passar perfume para disfarçar que não tomamos banho desde a semana passada, mas
isso apenas em seu aspecto patético.
O
moralismo antecipa a sociedade do espetáculo, inventando uma modalidade
religiosa do consumo contemporâneo de imagens. Não importa tanto ser justo
quanto parecer justo; não importa tanto ser casto quanto parecer casto. O
interior do homem é cheio de cobiça, prostituição e maldade, mas ninguém
precisa ficar sabendo disso. O moralista vende a imagem de justo e de puro, às
custas daqueles que não podem ou querem sustentar essa imagem. Gente tatuada, gente
que fala alto, gente como os homossexuais.
Ou
seja, o moralista é, no fundo, um falsificador. O moralismo é um tipo de
pirataria religiosa. A justiça do moralista não é a própria justiça; a pureza
do moralista não é a própria pureza. As virtudes do moralista dependem dos
vícios alheios. O moralista se eleva moralmente rebaixando os outros, subindo
nas costas dos outros. Contrariando a natureza, ele se comporta como um
predador de sua própria espécie, ambientando-se e procurando identificar qual
dos membros do bando é o mais fraco. Então ataca. Quantas jovens deixaram a
igreja porque ficaram mal faladas? E quem é que as deixou mal faladas? Apartai-vos
de mim vós que praticais a injustiça.
A
perpetuação do moralismo dentro da igreja exige inúmeras crucificações. O
moralismo é a falsa religião porque é a religião do falso bode expiatório. O
moralista no fundo não acredita na eficácia da cruz de Cristo como morte
substitutiva do pecador que livra do pecado. A conduta inquisitiva do moralista
exige que ainda uma vez alguém seja sacrificado. O moralismo, enquanto insiste
na necessidade do sacrifício, é uma forma de paganismo. O pagão é aquele que
ainda não tomou conhecimento da morte do cordeiro de Deus e que, portanto, se
acha refém da natureza e de seus elementos, a quem cultua, associando a fortuna
e a desventura à satisfação que o homem pode dar aos deuses. É a religiosidade
do medo. O sacrifício é necessário quando o medo é maior que o amor. Não existe
moralismo sem a cultura da delação e do medo. Já não somos irmãos, mas guardas
de uma prisão.
Mas
a maior de todas as desventuras, a raiz mesma delas, de onde nós mesmos
parecemos brotar, o mal, permanece incontrolável. Deve regularmente assombrar
ao pagão/moralista a ideia de que todos os sacrifícios são inúteis, do
contrário não precisariam ser renovados, porque nenhum deles pode apagar o mal.
O mal é como uma sombra inapreensível no imaginário religioso do
paganismo/moralismo. O mal das colheitas e o mal da enfermidade do filho podem
ser contornados. Mas eventualmente a mente, em seu velho vício de abstrair,
hipostasia essa entidade assustadora a partir de todas as suas manifestações,
surgindo o mal em si mesmo, o mal no homem. O mal como doença, o homem como
doença. Chega-se então ao ponto em que a distância entre deuses e homens se
torna insuportável. O abismo que separa o divino do humano se alarga, fazendo
aumentar o número dos sacrificados.
Um
elemento positivo do moralismo deveria ser justamente sua desconfiança em
relação ao gênero humano. A princípio, ela livraria nossa antropologia de
quaisquer resquícios rousseaunianos. Pena que essa desconfiança sempre tende a
se fixar nas outras pessoas, nunca em nós mesmos. A postura do moralista em
relação aos demais homens é que ele é a exceção à regra. Os demais homens são
corruptos, exceto ele, seja porque ele guarda o sábado e nunca se esquece das
abluções, seja porque ele foi lavado e remido pelo sangue do Cordeiro. O
conteúdo das justificativas muda, mas a forma viciada de se ver acima do outro
é a mesma. O grande inimigo da igreja é a conversão do cristão em fariseu, em
moralista. Por mais que nos orgulhemos de ser versados nas escrituras, temos
lido mal os evangelhos. Como os escribas, ficamos com a letra e esquecemos o
espírito. O moralismo é o sintoma de leituras deficientes dos evangelhos que
nos levaram para o outro lado da disputa entre Jesus e os fariseus, entre o
espírito e a letra, entre a misericórdia e o sacrifício.
Pois em que momento da
história da igreja o alvo da pregação do evangelho deixou de ser a falsa
religião e a arrogância dos religiosos e passou a ser as prostitutas, os
homossexuais, os pobres e os marginalizados em geral? Em que momento da
história da igreja a hipocrisia e o moralismo deixaram de ser os principais
obstáculos à nossa entrada no reino de Deus, concentrando-se os pregadores nos
pecados sexuais dos outros? Em que momento da história da igreja
apagamos das escrituras 1 Coríntios 5.12 e nos transformamos na patrulha moral
da sociedade? Hoje em dia os cristãos passam mais tempo se defendendo dos
comportamentos de uma sociedade da qual discordam que pregando Jesus e, para se
justificar, dizem que denunciar os abusos morais dos outros é o mesmo que
pregar Jesus. Ora, trata-se de um terrível engano.
O evangelho nunca começa
por qualquer regra de conduta. O evangelho só tem um ponto de partida legítimo
– Jesus Cristo: quem ele é, o que ele disse e o que ele fez. O resto –
inclusive sua aversão à sexualidade e à tatuagem alheias, meu irmão – é resto.
O Espírito ensinará aqueles que têm o Espírito. Mas primeiro é necessário que
as pessoas recebam o Espírito e, para isso, é primeiro necessário que elas
conheçam Jesus Cristo: quem ele é, o que ele disse e o que ele fez. As pessoas
precisam da verdade; mas a verdade não somos nós nem nossos modelos de conduta.
A verdade é Jesus Cristo. O problema do moralista é que ele sempre prega a si
mesmo como exemplo, e ele é um péssimo exemplo. Talvez a única diferença entre
nós e os acusadores da mulher surpreendida em adultério de João 8 seja que nós,
alegando estar sem pecado por causa do sangue de Cristo, a teríamos apedrejado.
O
moralismo está para o evangelho como a maquiagem está para a juventude. O
primeiro tenta simular os efeitos que apenas o segundo pode produzir. Só o
evangelho pode realmente transformar uma pessoa. Transformação acontece de
dentro pra fora. Mas o moralismo só pode alterar o exterior. Da exterioridade
se ocupam também os hipócritas, reduzindo a espiritualidade à encenação. Paulo
preferia uma igreja libertina a uma igreja hipócrita. Vide as duas epístolas
aos coríntios. Quando digo preferia, me refiro ao evangelho que ele pregou aos coríntios e ao modo como ele
enfrentou as dificuldades com aquela comunidade. Ele não exerceu domínio sobre
a fé de seus ouvintes. Ele argumentou com eles. Mostrou-lhes que não convinha
que se entregassem a quaisquer desejos como escravos. Ele enfatizou a liberdade
cristã sob todos os aspectos. Essa liberdade concedida no evangelho nos informa
que estamos livres do pecado de uma dupla maneira: somos livres para pecar,
porque já não há condenação sobre nós, e para não pecar, porque nascemos de
novo e já não somos escravos da velha natureza do pecado. Quem lê entenda.
Agora finalmente podemos escolher.
A hipocrisia se alimenta da aparência e do
controle sobre a vida alheia. Ao passo que a libertinagem seria um efeito
colateral e passageiro (não necessário, mas possível) do processo que conduz as
pessoas à liberdade. O único início legítimo do evangelho é a liberdade. A
doutrina da justificação pela fé está assentada sobre a nossa total
incapacidade de fazer a coisa certa. O novo nascimento é um novo começo. Nossas
dívidas foram saldadas na e pela cruz. Gloriar-se na cruz de Cristo, como diz
Paulo, é alegrar-se com o fato de que somos justos por causa dele. Já não
devemos nada a ninguém. Ou - o que é a mesma coisa - devemos tudo àquele que se
entregou por nós, como quem deve a vida ao melhor amigo. É sobre esse tipo de
consciência que a verdadeira espiritualidade deve estar apoiada. E não sobre o
medo do inferno ou da condenação. Esses são os rudimentos do mundo. Estamos em
casa agora.
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