domingo, 12 de junho de 2011

A torneira continua pingando

Jesus é um problema.

De alguma forma eu sei que ele faz sentido, como minha intuição adverte. Mas ele e as pessoas falando dele e o mundo todo falando dele como fala dele insistem em não fazer sentido, e principalmente algo nele – repito – insiste em não fazer sentido. E não apenas perifericamente, como se fosse um detalhe estapafúrdio, uma declaração indigesta que ele tenha feito aos fariseus, como muitas coisas na Bíblia ferem a nossa sensibilidade extremamente higiênica.

Não, a coisa vai além.

Ele todo é uma promessa que me fizeram desde que eu passei a conscientemente participar da civilização ocidental. É algo com que em algum momento da vida você tem de lidar e então transformar numa escolha. Você vai ter de aceitar ou recusar e passar a viver com o resultado dessa escolha. Ao menos, é isso que idealmente deveria acontecer, mas que naturalmente não acontece. Por uma questão de inteligência, digo que não pude ainda escolher. E ninguém que eu conheça ainda escolheu. Esse é que é problema. Estamos todos adiando essa questão como uma tarefa muito chata que é sempre substituída por coisas muito mais divertidas, já que vivemos num mundo repleto de opções de diversão. Eu poderia culpar o entretenimento e fazer minha duvidosa espiritualidade estar em risco por causa da televisão e da internet. Seria uma covardia plenamente verossímil, mas apenas isso: verossímil. É o tipo de coisa que você ouve e só pode aceitar porque não faltam evidências para tanto, mas que no fundo você sabe que não é exatamente assim.

Isso e o fato de Jesus ser um problema me levam a concluir que a verdade é, nesse mundo, apenas um pressentimento, o que me incomoda muito. Avançamos tanto na capacidade de comunicar, de vender uma ideia, e aquilo que deveria ser a maior das ideias, o mais persuasivo dos argumentos – a verdade –, é tão pouco evidente. Deus deveria dar uma boa olhada em seu departamento de marketing e fazer algumas mudanças. A verdade não passa de uma dor de dente que nos faz acordar no meio da noite, levantar da cama e ir até o banheiro para checar qual é mais ou menos a situação da nossa boca só para, chegando lá, perceber que parou de doer. E a coisa se repete mais umas cinco ou seis vezes durante a vida e só nos volta à memória quando acontece de novo, então lembramos de todas as outras vezes, mas, como a dor para, desistimos e nos convencemos de que não é nada. É a nossa estupidez primordial: considerar alguma coisa nada.

A ciência começa com uma desconfiança desse tipo. Ficamos incomodados com um detalhe e humildemente dedicamos nosso tempo e nossas vidas a dar forma e voz a esse detalhe, tentando justificar a perplexidade infantil que ele nos suscitou. Sem nós, ele poderia muito bem continuar sendo um nada. Podemos ser realmente muito inteligentes quando queremos.

Algumas pessoas choram descontroladamente, estão sentadas num bar ou num café, estão de férias caminhando na praia, sozinhas ouvindo as ondas se lançarem até a praia, e começam a chorar sem saber aonde isso vai dar. Eu não sou dessas pessoas. Acho que chorei apenas quando era criança, porque a verdade é que a minha vida é muito boa. E é assustador, ainda que eu mesmo não me assuste, que o fato da minha vida ser muito boa se deva simplesmente à sorte. Às vezes consigo relacionar a noção de sorte ou uma de suas variantes com essa outra noção a que damos o nome de Jesus. O resultado é um rosto no meio da escuridão, um vulto que, descrito, assustaria uma criança e que, visto, me assustaria. Jesus é certamente isso: um fantasma. E, como somos todos cartesianos, reagimos como um cartesiano reagiria diante de um fantasma: nós o ignoramos. Ele está na sala? Então sentimos fome e vamos para a cozinha fazer um lanchinho. Ele está no quarto? Então resolvemos terminar de ver aquela reprise na televisão, mesmo que tenhamos que dormir mais tarde.

Também me incomoda que Deus esteja tentando falar comigo e com as pessoas através da dor e do choro. Que Deus seja um incômodo. Percebam que eu deliberadamente passei a falar de Deus como se fosse óbvio equacioná-lo com Jesus e tomar um pelo outro a hora que quisermos. Isso também faz parte do mundo ocidental como uma herança a ser elaborada individualmente. Então Deus é uma dor de dente ou um choro descontrolado. Um religioso me corrigiria, dizendo que estes são sintomas da ausência de Deus, ou da falta de Deus. Deus passa a ser uma falta. Um não. Curiosamente isso faz sentido na minha cabeça. Jesus ser um não. Mas também curiosamente eu sou um leitor da Bíblia e li Paulo escrevendo que Jesus é apenas um sim, o eterno sim de Deus aos homens. Faço questão de citar: “O filho de Deus, o Cristo Jesus, que vos anunciamos, eu, Silvano e Timóteo, não foi sim e não, mas unicamente sim. Todas as promessas de Deus encontraram nele o seu sim”. A maioria das pessoas quer ouvir esse sim de Deus. Mas Deus até pode dizer sim, e Jesus ser esse sim dito de Deus, mas Deus em si mesmo é um não. É assim que ele tem sido na minha vida e na vida daqueles que eu mencionei.

Não quero mergulhar a coisa toda na melancolia. Jesus ser um não não é absolutamente insuportável porque é o que tem sido, como eu disse. É a situação atual, que até nos permite refletir sobre o assunto. A autoconsciência é um de seus atributos e, para ser franco, um de seus piores atributos. Se não fôssemos autoconscientes, talvez estivéssemos minimamente abertos para um diagnóstico alheio, mas, ao contrário, afundamos nas nossas próprias conclusões porque, no fim das contas, sei que estamos certos quando percebemos que alguma coisa está errada e que não há nada que possamos fazer. Mas aquele rosto na escuridão ainda me espreita, uma massa se deslocando conforme eu também me desloco, me fazendo retomar todos os cuidados que eu tinha quando, menino, achava que poderia me proteger dos espíritos cobrindo-me com o lençol até o pescoço, sem deixar os braços de fora. Essa era a providência fundamental: minha segurança dependia de cobrir inclusive os braços e os pés. A cabeça podia ficar exposta. Afinal, eu precisava respirar. Ou então, como ouvi de uma amiga minha, que fazia uma barreira de ursinhos e outros bichos de pelúcia em torno de si, na esperança de que eles a defendessem do reino espiritual do desconhecido.

Sinceramente, ainda dependemos dos lençóis e dos ursinhos de pelúcia para nos proteger de Jesus. Desconfio que, para aqueles que nunca viram uma, mas que passaram a vida temendo ver, todas as assombrações são Jesus. Todos os vultos furtivos são Deus. E a vontade de qualquer coisa indefinível que de vez em quando nos assalta e que eu costumava resolver associando-a imediatamente com sorvete, porque eu sempre gostei muito de sorvete, é a vontade de se ver com Jesus e decidir de uma vez por todas o que vamos fazer com ele. Posso responsabilizar a cultura ocidental por isso. Ela sempre foi um evangelista muito competente, porque me convenceu da necessidade de pensar seriamente na possibilidade de que Jesus exista do modo como se diz existir, mas também muito vaga, porque é extremamente difícil passar da pregação para a vida segundo as nossas circunstâncias mais banais e cotidianas. É como tentar consertar uma torneira que pinga recorrendo a Crítica da Razão Pura. De alguma forma, a Crítica da Razão Pura fala também da torneira pingando e, principalmente, de mim tentando consertá-la, afinal a torneira pingando é um fenômeno no sentido que Kant lhe deu e eu mesmo sou uma versão empírica do sujeito cognoscente que vemos ao longo das páginas de sua Crítica. Mas é fácil imaginar que, ao final da leitura de suas quinhentas páginas, devidamente anotadas, a torneira continuará pingando. Então, minha oração a Jesus, supondo que eu lhe desse essa chance e orasse a ele, e estou certo de que muita gente estaria pronta a me acompanhar, seria mais ou menos a seguinte: “Jesus, você que é o caminho, a verdade e a vida: a torneira continua pingando”.

À inscrição numa parede “Jesus é a resposta” alguém acrescenta logo abaixo “Mas qual é a pergunta?”. Muita gente considera isso uma blasfêmia, mas acho que é simplesmente teologia. A vida toda tenho ouvido que Jesus é a resposta, mas ninguém acrescenta para quê. É a pergunta que me interessa. Por isso, Jesus é um problema. Eu assumo o lugar de Pilatos lhe perguntando o que é a verdade. Sei que Pilatos não era a melhor das pessoas e que, no interrogatório e julgamento de Jesus, o cinema costuma retratá-lo como um sujeito muito razoável, que condena o messias a contragosto, e que nós compramos essa sua imagem. Meu Deus, ele era um político! Mas, toda vez que leio o evangelho de João, instantaneamente me identifico com Pilatos, sensibilizado com sua pergunta, que também é a minha e que cada vez mais sinto ser a pergunta mais importante da Bíblia. Ele a fez logo depois de Jesus lhe ter dito que veio ao mundo para dar testemunho da verdade e que quem é da verdade escuta a sua voz. Pois bem, estamos escutando sua voz e ele até pode estar nos dizendo a verdade, mas como saberíamos? A Bíblia relata que, “tendo dito isso”, isto é, tendo perguntado o que é a verdade, Pilatos saiu. A história não continua porque Pilatos saiu. O silêncio de Jesus fez Pilatos sair? Pilatos não esperou tempo suficiente? Se Jesus fez silêncio, era o silêncio já a resposta, como quem quer dizer: “você está me perguntando o que é a verdade; pois bem, eis ela diante de você”? Sim, Jesus é a verdade. Mas eu não entendo Jesus.

Como saber que Jesus é a verdade é mais ou menos o mesmo problema de como saber que Deus existe. E acho que a solução é a mesma, frustrante para a maioria de nós: não dá pra saber. O religioso me diz que eu tenho que tentar. É o que Pascal chamava de aposta. Mas, para topar a aposta, é necessário que eu saiba do que se trata. Estou apostando exatamente no quê? Eu preciso ter uma ideia para, no mínimo, saber que parte de mim eu tenho que investir nisso, afinal não se trata de dinheiro e não é meu bolso que está em jogo; e, se não é meu bolso, mas ainda estamos falando de uma aposta, o que está em jogo? O que eu tenho que apostar? Vão me dizer que é a vida. Mas a vida não me parece uma noção suficientemente universal para fazer frente a Deus. O que estou tentando dizer é que uma pessoa que ouve a palavra vida numa sentença não pensa necessariamente o mesmo que eu e que mesmo o que eu penso hoje pode mudar amanhã. Tem esse verso do Brecht que diz: “A verdade para mim é como uma casa e um carro. E eles me foram roubados”. Eu posso muito bem dizer que a vida é para mim como uma casa e um carro, ou como minha esposa e meus amigos, e estarei sendo até mais exato que o foi Brecht falando da verdade. O fato é que estamos jogando com as palavras, e elas não mentem, mas nós mentimos, porque não sabemos direito por que fazemos o que fazemos com as palavras. Se Jesus é um problema, nós somos o problema.

Muitas sutilezas nos separam de Deus, sutilezas nossas e dele, ou de seus teólogos. Mas reconheço que a maioria de nós simplesmente não está disposta a se envolver profundamente em nada. Contrariaria a tendência geral. A palavra de ordem é “Não se preocupe com isso”. Exigimos facilidades. O esforço generalizado da nossa formação social é criar uma gigantesca democracia de serviços na qual a gente possa consumir tranquilamente sem precisar se envolver. A ideia é justamente a de que se envolver é o tipo de coisa de que avanços tecnológicos e sociais devem nos poupar. Temos que tornar o envolvimento, o engajamento e o compromisso supérfluos, e creio que nunca vivemos no automático como hoje em dia. Deus precisa seguir nesse sentido se quiser ganhar espaço. Ele precisa se reinventar para facilitar a nossa vida. Não acho que queiramos lhe dar um rosto e hospedá-lo em nossa casa, ou mesmo em nosso coração, porque não tem onde dormir. Esse Deus se parece demais com um mendigo. Sua pobreza nos constrange, e o constrangimento é uma forma de abuso que não precisamos mais aceitar.

Mas, ainda assim, quando entardece e a gente contempla os céus, que se espraiam até se perderem em si mesmos, é como se nós acabássemos transportados não sei exatamente para onde, mas convencidos de uma generosidade inesgotável, testemunhada pela natureza. Fala-se no sentimento oceânico, que Freud negava ter sentido, sendo de qualquer forma essa a palavra dele. E mais uma vez dependemos do que dizemos, mesmo quando o assunto é o inefável ou o desconhecido, para onde Deus sempre parece se recolher, não importa o quanto a ciência faça diminuir o tamanho e a profundidade do que não sabemos.

Às vezes, por um momento, rápido demais para ser fixado em palavras, a dor de uma pessoa se mostra a nós, que geralmente precisamos de algum suporte material para resumir o que vemos, como a imagem da cinta com que ela era espancada por seu pai ou a casa onde ela cresceu sofrendo abusos. E se essa pessoa morre ou se vai para longe de nós, permanecemos com essa imagem, na qual encapsulamos aquela vida, que se torna compacta, mas para a qual, toda vez que voltamos a olhar, é como se espiássemos o abismo.

Se Deus é simplesmente um homem, e isso é Jesus, então é difícil saber como ele pode ter um rosto humano, mas ao mesmo tempo esse rosto ser o de todos os homens, de todas as épocas, os bons e os maus, os justos e os injustos, os exploradores e os explorados, os espancadores e os espancados, a vítima e seu algoz, como podemos todos estar nele, que às vezes imagino ser aquele lugar para onde a visão dos céus sem fim nos transporta, o único lugar onde podemos caber todos nós sem ao mesmo tempo ser o pior lugar do mundo. E me faz bem – no fim, é apenas isso, essa sensação, tão desprezada pelos espíritos esclarecidos –, me faz bem a ideia de que em um só homem caiba o mundo todo e a história e as garças e os bêbados e o desespero e a dança e as promessas de felicidade e justiça e o abismo, e que mesmo assim, com tanto peso, esse homem não se dobre, mas permaneça parado, de pé, na escuridão, sem se cansar. É essa sua plenitude?

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