Evangelho clandestino (teologia de boteco)
Genealogia
sexta-feira, 17 de julho de 2015
A justificação pela fé e o cumprimento da lei
sábado, 23 de novembro de 2013
Cristianismo e paganismo
O retorno ao paganismo é de fato uma regressão. O cristianismo emancipou o homem do paganismo, isto é, dos inúmeros determinismos do paganismo (Colossenses 2.10-16). No mundo do paganismo o homem é jogado de um lado para o outro pelo capricho dos deuses ou pela irracionalidade cega da natureza, o que dá na mesma. O homem pagão não ama a natureza – só o homem emancipado pode realmente amá-la –, mas a teme. Por isso é obrigado a lhe prestar culto e buscar seu favor sem quaisquer garantias. No mundo do paganismo a proximidade do divino permite que a qualquer momento um grupo tome o seu lugar para oprimir outro (Colossenses 2.8). De fato, divinizar o mundo é multiplicar as oportunidades e justificativas de servidão.
O próprio secularismo é um produto da herança cristã do ocidente. Nas civilizações pré-cristãs, pagãs, autoridade religiosa e estatal era uma só. O culto ao imperador, por exemplo, era a base ideológica da estrutura política do império romano. As injustiças sociais estavam assentadas sobre uma ordem divina inalterável encarnada em homens e coisas diante das quais só era admitido o culto conformado e agradecido. O cristianismo reconhece a desordem do mundo (1 João 5.19) – logo a necessidade de lutar contra ela em nome do reino de Deus – e a atribui ao pecado do homem, ou seja, responsabiliza o homem perante Deus e perante o homem, e assim fundamenta movimentos revolucionários de emancipação.
sábado, 2 de fevereiro de 2013
A falsa religião é o moralismo
sábado, 19 de janeiro de 2013
Teologias passam
terça-feira, 26 de junho de 2012
História, graça e natureza
quarta-feira, 7 de março de 2012
Crise de identidade #1
domingo, 4 de março de 2012
Um em Cristo
A vocação cristã concilia inimigos e os reúne sob um propósito transcendente. O cristão tem prioridades que nada têm que ver com programas partidários. Quase sempre alinhar-se significa restringir a proposta universalista do evangelho. O universalismo e a transcendência do evangelho só podem trazer insatisfação aos politizados. O evangelho exige um posicionamento que os politizados só podem considerar ambíguo. É ficar em cima do muro. Mas não é essa a questão. Jesus separou igreja e Estado, muito antes que o Estado cogitasse assimilar a igreja em seu próprio favor, quando proferiu sua famosa frase: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não é a resposta de um alienado, mas de alguém perfeitamente ciente de que os limites da religião coincidem com o da política e vice-versa.
O engajamento político logo dá num beco sem saída. Em algum momento é preciso saltar. A igreja é a comunidade terrena do Espírito Santo. É a comunidade do salto. Seus pés estão plantados no chão, mas seus braços apontam para os céus. O alvo se encontra nas alturas. Nem todos estão dispostos a abraçar tais paradoxos. É mais fácil se entregar ao reducionismo e ao maniqueísmo de esquerda e direita, de militância política e alienação espiritualista, de verdade científica e obscurantismo religioso, de fundamentalismo positivista e fundamentalismo cristão. Colocar-se a favor dos pobres e falar contra os ricos é esquerdismo. Tentar resgatar a busca humanista do equilíbrio é secularismo ou irracionalismo (depende de onde venha o ataque, se dos fundamentalistas religiosos ou cientificistas). O consenso da sociedade de consumo só se rompe por questões totalmente irrelevantes e graças a polarizações obtusas, que ignoram que a realidade é sempre mais complexa.
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Morto-vivo
A melhor imagem para o pecado é a do vício. E nós, cristãos, somos viciados em recuperação. A dinâmica do vício é obsessivo-compulsiva. Ela consiste numa fórmula mais ou menos como essa: eu não posso viver sem isto. Isto pode ser qualquer coisa: chocolate, homens, mulheres, televisão, sexo, sucesso, fitness, dinheiro, luxo, status, futebol, etc. Isto é um ídolo. Um ídolo é tudo o que ocupa o lugar de Deus não sendo Deus. É o impostor da divindade ou uma divindade impostora.
A Bíblia diz, pela boca do apóstolo Paulo e de Jesus, que o pecador está morto por causa do seu pecado. Reescrevamos isso substituindo os termos pelas definições anteriores. O viciado está morto por causa do seu vício. Aquele que acha que não pode viver sem chocolate/um corpão/você está morto por causa de chocolate/corpão/você. O vício te matou. Um dos significados neotestamentários para a morte mais recorrentes é escravidão. Reescrevamos o enunciado mais uma vez adaptando-o a mais essa definição. O viciado é escravo do seu vício. Aquele que acha que não pode viver sem chocolate/um corpão/você é escravo do chocolate/um corpão/você.
O pecador é, portanto, retratado na Bíblia como um zumbi. O que é um zumbi? É uma criatura que parece viva, mas que está morta, e que vaga pelo mundo com uma fome insaciável de cérebro. Ou seja, um viciado morto-vivo ou um morto-vivo viciado. Todos nós éramos mortos-vivos viciados.
A Bíblia nos diz que Jesus nos deu vida e nos libertou da escravidão do pecado. Ou seja, ela transformou mortos-vivos em gente de verdade. Ninguém que não tenha nascido de novo é um ser humano de verdade. É apenas a promessa de um ser humano. Isso porque não é livre nem está vivo. É um monstro se fazendo passar por um ser humano. Só Jesus era um homem de verdade. Mas sua morte e ressurreição nos deu o poder de sermos gente de verdade. Quem tem ouvidos para ouvir ouça.
Ainda sobre liberdade
A liberdade, cedo ou tarde, descamba para a libertinagem, por menor que seja. Convém nos corrigirmos e nos aperfeiçoarmos. Leva tempo. Mas a alternativa à liberdade não é melhor nem mais segura. O controle engessa as consciências e conduz à morte. Uma das formas mais disseminadas da morte é a hipocrisia. É o morto se fingindo de vivo. É melhor uma igreja libertina disposta a se santificar que nenhuma igreja. E a igreja é igreja de vivos. Vivos pecam e são perdoados. O evangelho se resume nesta dinâmica. Só os mortos não pecam. Temos gastado muito dinheiro e tempo com verniz. É hora de aprofundarmos a teologia e enfrentar a parte inglória da humanidade. Manter o horror diante dos olhos para então abraçar a graça salvadora de Jesus como resposta. O amor de Deus só faz sentido para gente que dele se aproxima buscando ser perdoado. Os justos não precisam ser amados. Estão esperando recompensas. Quanto a nós - a nossa recompensa é Cristo.
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
Liberdade cristã
O moralismo está para o evangelho como a maquiagem está para a juventude. O primeiro tenta simular os efeitos que apenas o segundo pode produzir. Só o evangelho pode realmente transformar uma pessoa. Transformação acontece de dentro pra fora. Mas o moralismo só pode alterar o exterior. Da exterioridade se ocupam também os hipócritas, reduzindo a espiritualidade à encenação. Paulo preferia uma igreja libertina a uma igreja hipócrita. Vide as duas epístolas aos coríntios. Quando digo preferia, me refiro ao evangelho que ele pregou aos coríntios e ao modo como ele enfrentou as dificuldades com aquela comunidade. Ele não exerceu domínio sobre a fé de seus ouvintes. Ele argumentou com eles. Mostrou-lhes que não convinha que se entregassem a quaisquer desejos como escravos. Ele enfatizou a liberdade cristã sob todos os aspectos. Essa liberdade concedida no evangelho nos informa que estamos livres do pecado de uma dupla maneira: somos livres para pecar, porque já não há condenação sobre nós, e para não pecar, porque nascemos de novo e já não somos escravos da velha natureza do pecado. Quem lê entenda. Agora finalmente podemos escolher.
A hipocrisia se alimenta da aparência e do controle sobre a vida alheia. Ao passo que a libertinagem seria um efeito colateral e passageiro (não necessário, mas possível) do processo que conduz as pessoas à liberdade. O único início legítimo do evangelho é a liberdade. A doutrina da justificação pela fé está assentada sobre a nossa total incapacidade de fazer a coisa certa. O novo nascimento é um novo começo. Nossas dívidas foram saldadas na e pela cruz. Gloriar-se na cruz de Cristo, como diz Paulo, é alegrar-se com o fato de que somos justos por causa dele. Já não devemos nada a ninguém. Ou - o que é a mesma coisa - devemos tudo àquele que se entregou por nós, como quem deve a vida ao melhor amigo. É sobre esse tipo de consciência que a verdadeira espiritualidade deve estar apoiada. E não sobre o medo do inferno ou da condenação. Esses são os rudimentos do mundo. Estamos em casa agora.
quarta-feira, 2 de novembro de 2011
Permanecer na verdade
Há esse grande perigo do qual principalmente quem nasceu de novo não está livre até que este mundo tenha passado, isto é, a incapacidade de se satisfazer com a verdade. A verdade não tem bastado e porque não tem bastado começamos a buscar complementos para ela e então Cristo crucificado já não parece dar conta do que vivemos e do que precisamos. Novas unções e revelações relativas a anjos e homens começam a ser acrescentadas para renovar os corações embrutecidos. A palavra anunciada já não é o suficiente. É nesse momento que corremos o perigo de apostatar. Apostatar é não insistir na cruz de Cristo e na sua suficiência. E não digo que isso seja fácil. É impossível. Permanecer em Cristo - conforme a terminologia joanina - é impossível para aquele que não nasceu de novo. E é preciso nascer de novo repetidas vezes. E só se nasce de novo a cada dia e a cada momento quem insiste na cruz e em sua suficiência. Aqui a argumentação se torna circular, de fato. Isso porque permanecer em Cristo e insistir em sua cruz são senão partes da mesma disciplina espiritual baseada ela toda na fé. Quem mais bem explicou o que é a fé e portanto fez com que ela deixasse de ser mais uma coisa vaga com que pregadores concluem o sermão deixando o mais difícil para sua audiência não foi o autor de Hebreus, apresentando uma definição conceitual extremamente sofisticada no capítulo 11 de seu livro. Não, foi Jesus dizendo aos discípulos que o seu coração pode ser encontrado onde está o seu tesouro. O tesouro de um homem é o objeto de sua mais íntima fé. Isso quer dizer que ter fé em Jesus é colocar o seu coração nele como quem descansa das preocupações da vida porque ainda tem... Muita gente tem completado essa sentença com sua conta bancária. E de fato completa uma sentença a respeito de si mesmo. Mas então aquele que permanece em Cristo e insiste em sua cruz é justamente aquele que esforça seu coração no sentido de este se colocar como um fardo muito pesado é colocado no chão e esse chão onde o fardo se apoia ou é descarregado é Jesus e sua cruz. É dizer ufa! quando diante de declarações como a que lemos no evangelho de João: "Eis o cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo". Isso tem que ser novo e novamente novo e novamente novo todos os dias e a todo o momento de nossas vidas. A verdade tem que nos bastar. Só o Espírito pode renová-la naquele que a ele se volta pedindo que seu coração seja colocado todo ele sobre a cruz de Cristo.
domingo, 12 de junho de 2011
A torneira continua pingando
Jesus é um problema.
De alguma forma eu sei que ele faz sentido, como minha intuição adverte. Mas ele e as pessoas falando dele e o mundo todo falando dele como fala dele insistem em não fazer sentido, e principalmente algo nele – repito – insiste em não fazer sentido. E não apenas perifericamente, como se fosse um detalhe estapafúrdio, uma declaração indigesta que ele tenha feito aos fariseus, como muitas coisas na Bíblia ferem a nossa sensibilidade extremamente higiênica.
Não, a coisa vai além.
Ele todo é uma promessa que me fizeram desde que eu passei a conscientemente participar da civilização ocidental. É algo com que em algum momento da vida você tem de lidar e então transformar numa escolha. Você vai ter de aceitar ou recusar e passar a viver com o resultado dessa escolha. Ao menos, é isso que idealmente deveria acontecer, mas que naturalmente não acontece. Por uma questão de inteligência, digo que não pude ainda escolher. E ninguém que eu conheça ainda escolheu. Esse é que é problema. Estamos todos adiando essa questão como uma tarefa muito chata que é sempre substituída por coisas muito mais divertidas, já que vivemos num mundo repleto de opções de diversão. Eu poderia culpar o entretenimento e fazer minha duvidosa espiritualidade estar em risco por causa da televisão e da internet. Seria uma covardia plenamente verossímil, mas apenas isso: verossímil. É o tipo de coisa que você ouve e só pode aceitar porque não faltam evidências para tanto, mas que no fundo você sabe que não é exatamente assim.
Isso e o fato de Jesus ser um problema me levam a concluir que a verdade é, nesse mundo, apenas um pressentimento, o que me incomoda muito. Avançamos tanto na capacidade de comunicar, de vender uma ideia, e aquilo que deveria ser a maior das ideias, o mais persuasivo dos argumentos – a verdade –, é tão pouco evidente. Deus deveria dar uma boa olhada em seu departamento de marketing e fazer algumas mudanças. A verdade não passa de uma dor de dente que nos faz acordar no meio da noite, levantar da cama e ir até o banheiro para checar qual é mais ou menos a situação da nossa boca só para, chegando lá, perceber que parou de doer. E a coisa se repete mais umas cinco ou seis vezes durante a vida e só nos volta à memória quando acontece de novo, então lembramos de todas as outras vezes, mas, como a dor para, desistimos e nos convencemos de que não é nada. É a nossa estupidez primordial: considerar alguma coisa nada.
A ciência começa com uma desconfiança desse tipo. Ficamos incomodados com um detalhe e humildemente dedicamos nosso tempo e nossas vidas a dar forma e voz a esse detalhe, tentando justificar a perplexidade infantil que ele nos suscitou. Sem nós, ele poderia muito bem continuar sendo um nada. Podemos ser realmente muito inteligentes quando queremos.
Algumas pessoas choram descontroladamente, estão sentadas num bar ou num café, estão de férias caminhando na praia, sozinhas ouvindo as ondas se lançarem até a praia, e começam a chorar sem saber aonde isso vai dar. Eu não sou dessas pessoas. Acho que chorei apenas quando era criança, porque a verdade é que a minha vida é muito boa. E é assustador, ainda que eu mesmo não me assuste, que o fato da minha vida ser muito boa se deva simplesmente à sorte. Às vezes consigo relacionar a noção de sorte ou uma de suas variantes com essa outra noção a que damos o nome de Jesus. O resultado é um rosto no meio da escuridão, um vulto que, descrito, assustaria uma criança e que, visto, me assustaria. Jesus é certamente isso: um fantasma. E, como somos todos cartesianos, reagimos como um cartesiano reagiria diante de um fantasma: nós o ignoramos. Ele está na sala? Então sentimos fome e vamos para a cozinha fazer um lanchinho. Ele está no quarto? Então resolvemos terminar de ver aquela reprise na televisão, mesmo que tenhamos que dormir mais tarde.
Também me incomoda que Deus esteja tentando falar comigo e com as pessoas através da dor e do choro. Que Deus seja um incômodo. Percebam que eu deliberadamente passei a falar de Deus como se fosse óbvio equacioná-lo com Jesus e tomar um pelo outro a hora que quisermos. Isso também faz parte do mundo ocidental como uma herança a ser elaborada individualmente. Então Deus é uma dor de dente ou um choro descontrolado. Um religioso me corrigiria, dizendo que estes são sintomas da ausência de Deus, ou da falta de Deus. Deus passa a ser uma falta. Um não. Curiosamente isso faz sentido na minha cabeça. Jesus ser um não. Mas também curiosamente eu sou um leitor da Bíblia e li Paulo escrevendo que Jesus é apenas um sim, o eterno sim de Deus aos homens. Faço questão de citar: “O filho de Deus, o Cristo Jesus, que vos anunciamos, eu, Silvano e Timóteo, não foi sim e não, mas unicamente sim. Todas as promessas de Deus encontraram nele o seu sim”. A maioria das pessoas quer ouvir esse sim de Deus. Mas Deus até pode dizer sim, e Jesus ser esse sim dito de Deus, mas Deus em si mesmo é um não. É assim que ele tem sido na minha vida e na vida daqueles que eu mencionei.
Não quero mergulhar a coisa toda na melancolia. Jesus ser um não não é absolutamente insuportável porque é o que tem sido, como eu disse. É a situação atual, que até nos permite refletir sobre o assunto. A autoconsciência é um de seus atributos e, para ser franco, um de seus piores atributos. Se não fôssemos autoconscientes, talvez estivéssemos minimamente abertos para um diagnóstico alheio, mas, ao contrário, afundamos nas nossas próprias conclusões porque, no fim das contas, sei que estamos certos quando percebemos que alguma coisa está errada e que não há nada que possamos fazer. Mas aquele rosto na escuridão ainda me espreita, uma massa se deslocando conforme eu também me desloco, me fazendo retomar todos os cuidados que eu tinha quando, menino, achava que poderia me proteger dos espíritos cobrindo-me com o lençol até o pescoço, sem deixar os braços de fora. Essa era a providência fundamental: minha segurança dependia de cobrir inclusive os braços e os pés. A cabeça podia ficar exposta. Afinal, eu precisava respirar. Ou então, como ouvi de uma amiga minha, que fazia uma barreira de ursinhos e outros bichos de pelúcia em torno de si, na esperança de que eles a defendessem do reino espiritual do desconhecido.
Sinceramente, ainda dependemos dos lençóis e dos ursinhos de pelúcia para nos proteger de Jesus. Desconfio que, para aqueles que nunca viram uma, mas que passaram a vida temendo ver, todas as assombrações são Jesus. Todos os vultos furtivos são Deus. E a vontade de qualquer coisa indefinível que de vez em quando nos assalta e que eu costumava resolver associando-a imediatamente com sorvete, porque eu sempre gostei muito de sorvete, é a vontade de se ver com Jesus e decidir de uma vez por todas o que vamos fazer com ele. Posso responsabilizar a cultura ocidental por isso. Ela sempre foi um evangelista muito competente, porque me convenceu da necessidade de pensar seriamente na possibilidade de que Jesus exista do modo como se diz existir, mas também muito vaga, porque é extremamente difícil passar da pregação para a vida segundo as nossas circunstâncias mais banais e cotidianas. É como tentar consertar uma torneira que pinga recorrendo a Crítica da Razão Pura. De alguma forma, a Crítica da Razão Pura fala também da torneira pingando e, principalmente, de mim tentando consertá-la, afinal a torneira pingando é um fenômeno no sentido que Kant lhe deu e eu mesmo sou uma versão empírica do sujeito cognoscente que vemos ao longo das páginas de sua Crítica. Mas é fácil imaginar que, ao final da leitura de suas quinhentas páginas, devidamente anotadas, a torneira continuará pingando. Então, minha oração a Jesus, supondo que eu lhe desse essa chance e orasse a ele, e estou certo de que muita gente estaria pronta a me acompanhar, seria mais ou menos a seguinte: “Jesus, você que é o caminho, a verdade e a vida: a torneira continua pingando”.
À inscrição numa parede “Jesus é a resposta” alguém acrescenta logo abaixo “Mas qual é a pergunta?”. Muita gente considera isso uma blasfêmia, mas acho que é simplesmente teologia. A vida toda tenho ouvido que Jesus é a resposta, mas ninguém acrescenta para quê. É a pergunta que me interessa. Por isso, Jesus é um problema. Eu assumo o lugar de Pilatos lhe perguntando o que é a verdade. Sei que Pilatos não era a melhor das pessoas e que, no interrogatório e julgamento de Jesus, o cinema costuma retratá-lo como um sujeito muito razoável, que condena o messias a contragosto, e que nós compramos essa sua imagem. Meu Deus, ele era um político! Mas, toda vez que leio o evangelho de João, instantaneamente me identifico com Pilatos, sensibilizado com sua pergunta, que também é a minha e que cada vez mais sinto ser a pergunta mais importante da Bíblia. Ele a fez logo depois de Jesus lhe ter dito que veio ao mundo para dar testemunho da verdade e que quem é da verdade escuta a sua voz. Pois bem, estamos escutando sua voz e ele até pode estar nos dizendo a verdade, mas como saberíamos? A Bíblia relata que, “tendo dito isso”, isto é, tendo perguntado o que é a verdade, Pilatos saiu. A história não continua porque Pilatos saiu. O silêncio de Jesus fez Pilatos sair? Pilatos não esperou tempo suficiente? Se Jesus fez silêncio, era o silêncio já a resposta, como quem quer dizer: “você está me perguntando o que é a verdade; pois bem, eis ela diante de você”? Sim, Jesus é a verdade. Mas eu não entendo Jesus.
Como saber que Jesus é a verdade é mais ou menos o mesmo problema de como saber que Deus existe. E acho que a solução é a mesma, frustrante para a maioria de nós: não dá pra saber. O religioso me diz que eu tenho que tentar. É o que Pascal chamava de aposta. Mas, para topar a aposta, é necessário que eu saiba do que se trata. Estou apostando exatamente no quê? Eu preciso ter uma ideia para, no mínimo, saber que parte de mim eu tenho que investir nisso, afinal não se trata de dinheiro e não é meu bolso que está em jogo; e, se não é meu bolso, mas ainda estamos falando de uma aposta, o que está em jogo? O que eu tenho que apostar? Vão me dizer que é a vida. Mas a vida não me parece uma noção suficientemente universal para fazer frente a Deus. O que estou tentando dizer é que uma pessoa que ouve a palavra vida numa sentença não pensa necessariamente o mesmo que eu e que mesmo o que eu penso hoje pode mudar amanhã. Tem esse verso do Brecht que diz: “A verdade para mim é como uma casa e um carro. E eles me foram roubados”. Eu posso muito bem dizer que a vida é para mim como uma casa e um carro, ou como minha esposa e meus amigos, e estarei sendo até mais exato que o foi Brecht falando da verdade. O fato é que estamos jogando com as palavras, e elas não mentem, mas nós mentimos, porque não sabemos direito por que fazemos o que fazemos com as palavras. Se Jesus é um problema, nós somos o problema.
Muitas sutilezas nos separam de Deus, sutilezas nossas e dele, ou de seus teólogos. Mas reconheço que a maioria de nós simplesmente não está disposta a se envolver profundamente em nada. Contrariaria a tendência geral. A palavra de ordem é “Não se preocupe com isso”. Exigimos facilidades. O esforço generalizado da nossa formação social é criar uma gigantesca democracia de serviços na qual a gente possa consumir tranquilamente sem precisar se envolver. A ideia é justamente a de que se envolver é o tipo de coisa de que avanços tecnológicos e sociais devem nos poupar. Temos que tornar o envolvimento, o engajamento e o compromisso supérfluos, e creio que nunca vivemos no automático como hoje em dia. Deus precisa seguir nesse sentido se quiser ganhar espaço. Ele precisa se reinventar para facilitar a nossa vida. Não acho que queiramos lhe dar um rosto e hospedá-lo em nossa casa, ou mesmo em nosso coração, porque não tem onde dormir. Esse Deus se parece demais com um mendigo. Sua pobreza nos constrange, e o constrangimento é uma forma de abuso que não precisamos mais aceitar.
Mas, ainda assim, quando entardece e a gente contempla os céus, que se espraiam até se perderem em si mesmos, é como se nós acabássemos transportados não sei exatamente para onde, mas convencidos de uma generosidade inesgotável, testemunhada pela natureza. Fala-se no sentimento oceânico, que Freud negava ter sentido, sendo de qualquer forma essa a palavra dele. E mais uma vez dependemos do que dizemos, mesmo quando o assunto é o inefável ou o desconhecido, para onde Deus sempre parece se recolher, não importa o quanto a ciência faça diminuir o tamanho e a profundidade do que não sabemos.
Às vezes, por um momento, rápido demais para ser fixado em palavras, a dor de uma pessoa se mostra a nós, que geralmente precisamos de algum suporte material para resumir o que vemos, como a imagem da cinta com que ela era espancada por seu pai ou a casa onde ela cresceu sofrendo abusos. E se essa pessoa morre ou se vai para longe de nós, permanecemos com essa imagem, na qual encapsulamos aquela vida, que se torna compacta, mas para a qual, toda vez que voltamos a olhar, é como se espiássemos o abismo.
Se Deus é simplesmente um homem, e isso é Jesus, então é difícil saber como ele pode ter um rosto humano, mas ao mesmo tempo esse rosto ser o de todos os homens, de todas as épocas, os bons e os maus, os justos e os injustos, os exploradores e os explorados, os espancadores e os espancados, a vítima e seu algoz, como podemos todos estar nele, que às vezes imagino ser aquele lugar para onde a visão dos céus sem fim nos transporta, o único lugar onde podemos caber todos nós sem ao mesmo tempo ser o pior lugar do mundo. E me faz bem – no fim, é apenas isso, essa sensação, tão desprezada pelos espíritos esclarecidos –, me faz bem a ideia de que em um só homem caiba o mundo todo e a história e as garças e os bêbados e o desespero e a dança e as promessas de felicidade e justiça e o abismo, e que mesmo assim, com tanto peso, esse homem não se dobre, mas permaneça parado, de pé, na escuridão, sem se cansar. É essa sua plenitude?