sábado, 19 de janeiro de 2013

Teologias passam

Não adiante insistir na teologia reformada como "a" teologia. Toda teologia é circunstancial; toda teologia é um produto da história. Isso quer dizer que ela foi formulada segundo necessidades específicas de uma época específica que talvez já não sejam as necessidades da nossa época. Teologias têm prazo de validade. Elas passam. O que não passa é a palavra de Deus. O que não passa é o Cristo, perfeição da revelação. Insistir em "uma" teologia é demonstrar falta de senso histórico e, portanto, falta de senso missiológico. Em vez de humildemente se curvar às necessidades do outro, que são necessidades da cultura, necessidades do homem, como Jesus fez encarnando e Paulo se fazendo gentio, a gente quer impor a nossa teologia, a nossa cultura, a nossa moral, as nossas regras. Confundimos o anúncio da boa nova com imposição de um estilo de vida. Confundimos evangelismo com imperialismo. 

O grande erro das autoridades religiosas, em todos os tempos e credos, é transformar o contingente em eterno e o humano em divino. O mandamento humano vendido como mandamento divino. Ouviram que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. Mas entenderam? Hoje o que se vê, da parte de gente bem-intencionada até, é o homem feito para a teologia em vez de a teologia feita para o homem. O propósito de fazer teologia "do ponto de vista de Deus" e assim "combater o humanismo e a secularização" soa lindo, mas no fundo é sinal de que não entenderam o que é teologia. 

O ponto de vista de Deus já está dado: é Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne. Ele é inclusive o humanismo de Deus, humanismo avant la lettre. Agora, o que vem a seguir é como a gente responde àquela pergunta de Jesus aos escribas e doutores da lei: como lês? Como você lê isto - Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne? Esse é o evento, o fato, o objeto a ser lido, a ser teologizado. Esse é o ponto produtor das teologias. E quem é que produz essas teologias? Somos nós, guiados pelo Espírito Santo, conforme as nossas necessidades. O eterno é esse evento. O contingente somos nós. O Espírito nos ajuda a ler conforme o que nos falta. O bororo vai ler o evento segundo as necessidades do bororo. A mãe solteira vai ler o evento segundo as necessidades da mãe solteira. O evento está dado. Nós é que não estamos. Nós e nossas teologias. 

O desastre é fazer da minha teologia a teologia de todo o mundo, a única teologia. A teologia oficial. Imagine o desastre - social, histórico, missiológico - de se enfiar goela baixo no bororo a teologia da mãe solteira. Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne nos termos da mãe solteira não fará o menor sentido para o bororo. O evento se perderá porque não houve adequação cultural, isto é, teológica, ou, como dizem os missiólogos, aculturação. Muita gente se perde só porque a gente não consegue pensar fora das nossas cabecinhas. Inteligência é pensar com a cabeça dos outros. Missão é pensar com a cabeça dos outros. A encarnação é Deus pensando com a cabeça dos outros. Deus pensando com a cabeça da criatura. 

Mas a gente tem nojinho do pós-modernismo. A gente tem nojinho dos movimentos sociais. A gente tem nojinho do movimento LGBT. A gente tem nojinho da nossa geração. Me pergunto se Paulo, chamado apóstolo dos gentios, tinha nojinho dos gentios. A gente quer resgatar os valores de antigamente. A gente quer resgatar a família. Mas pregar o evangelho não é pregar moral e bons costumes. Isso é moralismo. Moralismo é o nome moderno do farisaísmo; o mesmo que crucificou Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne. 

Leiam o começo do capítulo 4 do evangelho de João e prestem atenção no diálogo de Jesus com a mulher samaritana. Ele não pregou contra o pecado dela porque ela já sabia qual era seu pecado. Ele pregou a favor das necessidades dela. Ele pregou a satisfação das necessidades dela. Ele se pregou como satisfação das necessidades dela. Isso é evangelho: pregar Jesus como solução. O pecado é só sintoma. A maioria das pregações é apenas condenação de pecado, isto é, listagem dos sintomas. A causa nunca é apresentada. Muito menos a cura. Falar que Jesus é a resposta e parar por aí é o mesmo que dar um bisturi na mão de uma criança de dez anos e dizer: se vira. Isso pode salvar sua vida, mas você também pode sangrar até a morte. 

Missionários relatam aparições de Jesus para indígenas, que o veem como indígena, e não como um europeu de cabelos compridos e olhos claros. Bom, o uso que fazemos da teologia reformada é o mesmo que empurrar um Jesus de olhos azuis para um indígena. Aliás, é o que fazemos com os negros; é o que fazemos com os orientais. Saudades do patriarcado não vão alcançar esta geração. Não adianta ter saudades de uma idade de ouro, quando as pessoas respeitavam a família e os bons costumes, antes do iluminismo e do secularismo. O mundo jaz no maligno ontem, hoje e sempre. Antes do iluminismo já era ruim. Protestante ressentido com o iluminismo é até absurdo. O iluminismo é apenas consequência do renascimento; e protestantismo e renascimento são unha e carne. O que meus irmãos querem? Um retorno à idade média? À hegemonia cultural da igreja católica? Isto é, o que eles querem é a supressão da "plenitude dos tempos" da reforma? 

Não se trata de fazer apologia do iluminismo, mas de assinalar que a história não para. Ela é movimento, cheia de erros, acertos, crimes e injustiças humanas. E é através dela que a soberania de Deus se exerce, na e pela história. Mas meus irmãos que pregam uma adesão estrita à teologia reformada parecem querer parar a história, parar o movimento, como se duvidassem do controle de Deus sobre ela. A manobra emergencial que adotam é tomar a cabeça do homem da idade média - que é o homem que precisou elaborar a teologia da reforma - e fazer dela a nossa cabeça. Não funciona. O homem da idade média e sua teologia é tão compatível com o adolescente negro da periferia ouvinte de Racionais MCs quanto o bororo é compatível com a mãe solteira. Ou seja, no fundo, há alguma compatibilidade: ambos são gente, seja lá o que isso signifique. Acho que só Deus sabe o que isso significa - ser gente - e por isso mesmo ele é o nosso denominador comum, Jesus Cristo nosso Senhor vindo em carne, e por isso o Espírito é o intérprete autorizado das escrituras.

Mas vamos aposentar a teologia reformada? Muito pelo contrário: vamos dar ouvidos a Paulo e reter o que é bom. Beber da tradição e atualizar a tradição em vista das necessidades desta geração, isto é, nos termos do modo de pensar e de sentir desta geração. Ou falamos sua língua e respeitamos sua cultura - secular, anticlerical, humanista, relativista, transgênero -, ou não seremos ouvidos. Só assim alcançaremos esta geração e qualquer outra. Até quando afastaremos Jesus das pessoas, das culturas, por causa da nossa cultura, da nossa cabeça, da nossa teologia? As culturas - a minha e a sua - passam, mas Cristo permanece. Como você lê isso?

terça-feira, 26 de junho de 2012

História, graça e natureza

A história da salvação é a trama invisível pela qual natureza, graça e história formam uma única torrente saída do trono de Deus. A natureza é o reino das leis inalteráveis, da justiça sumária e da lógica estrita. Nenhuma sentença aceita apelação e toda condenação é imediata. É o domínio da lei. Quando entendemos que a natureza é puramente lei e que a lei é puramente natureza, fica claro que a natureza usurpa o lugar da graça como fonte mantenedora da vida. Nada como a lei pode de si mesmo dar vida. A graça é a doadora e sustentadora da vida. Ela se esconde sob cada evento da natureza com a discrição muda do milagre. Reconhecê-la é aprender que a única realidade é a do milagre. O milagre liberta das execuções inapeláveis da natureza. A suprema alegria da graça é promover exceções à natureza.

Mas a natureza não está em desacordo com a graça. Ela é apenas muito limitada. A graça excede a natureza. A natureza é meramente o aspecto visível ou superficial dos incontáveis milagres que a graça realiza. A natureza insiste na regra; ela mesma é a regra. Mas a graça é a exceção e a vida é um fato da exceção. Que haja vida não é uma necessidade de qualquer coisa. A vida é um dom. Mesmo os incrédulos reconhecem a gratuidade da vida e o admitem dizendo que ela é obra do acaso, resultado de inúmeras condições favoráveis. Ou seja, não podem recusar as noções de gratuidade e favor.

A invisibilidade da graça é a graça tomada como natureza. Os olhos humanos são parte da natureza e servem para apreendê-la. Os olhos da natureza julgam que a graça é invisível, mas a graça simplesmente não é visível segundo os olhos da natureza. Não há argumentos que convençam da existência da graça. Aquele que pede provas no fundo está confundindo a graça com a natureza ou gostaria que aquela se apresente como essa. Ela permanece dissimulada aos olhos daqueles que se agarram à natureza como verdade profunda da existência. É preciso soltar-se da natureza. É preciso acreditar na graça. A fé é um livre ato da vontade totalmente sustentado sobre si mesmo. Nada o nega; nada o suporta. A graça, sendo liberdade, só pode mesmo ser admitida por fé.

A história é o modo como os homens se apropriam, segundo suas necessidades, daquilo que encontram dado. É a confrontação do homem com a natureza. A história é a natureza adaptada às necessidades humanas. O homem deve portanto aprender a colaborar com a natureza e a fazer dela sua colaboradora. Ele deve se reconhecer como parte dela.

No entanto o homem é como uma fresta pela qual enxergamos que a natureza é serva dos propósitos da graça. A história da salvação, ainda que centrada no homem, não se esgota nele.

A santidade de Deus é o fato de ele ser a suprema exceção, sob todos os aspectos, a todas as coisas.

A história da salvação é anterior à história. O princípio da história é a morte do homem. A história começa quando o homem rejeita a graça. Este evento é chamado de queda pela teologia. A queda é a transgressão da lei como recusa da graça. O tempo anterior à queda é um tempo no qual a graça se confunde com a natureza: Deus caminha no jardim que o homem habita.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Crise de identidade #1

Está claro que vivemos uma crise de identidade generalizada. A nossa não é uma sociedade fechada como a de antigamente. Pelo menos na superfície. No passado você sabia aonde deveria chegar em função da família na qual tinha nascido. Seu pai era sapateiro? Então você também seria sapateiro. Seu pai trabalhava na fábrica de pregos do bairro? Então você também trabalharia na fábrica de pregos do bairro. Você casaria porque todo o mundo casava. Você teria filhos porque todo o mundo tinha filhos. Você seria católico e acharia comunismo coisa do capeta porque todo o mundo era católico e achava comunismo coisa do capeta. As peças do jogo eram as mesmas para todo o mundo. Elas se moviam do mesmo jeito.

As possibilidades eram reduzidas e já tinham sido estabelecidas antes do seu nascimento. Você só podia chegar e se sentar à mesa no lugar com o seu nome. Você sabia quem era e que papel ocupava no mundo porque havia uma comunidade inteira para lhe dizer isso. Era uma prisão, mas uma prisão bastante conveniente. Ninguém precisava ter crises existenciais nas quais se perguntava quem era ou o que faria da vida. Você era o que sua família é e iria fazer o que todo o mundo na sua família faz. E ninguém questionava isso. Nem seus professores, nem seus amigos, nem o governo. Na verdade, muito pelo contrário: todos confirmavam o que seu pai lhe dizia. A autoridade era uma só. Todos diziam a mesma coisa. Isso era uma sociedade fechada ou uma sociedade de escolhas limitadas.

Mas nossa sociedade não é essa. Pelo menos na superfície. Diz-se que é uma sociedade de escolhas ilimitadas. Sim, na teoria você pode ser aquilo que quiser ser e fazer o que quiser fazer. Você pode ser filho do padeiro e querer ser sapateiro. Você pode ser filho do policial e querer ser astronauta. (Sim, essas são ocupações muito antigas; reconheço o anacronismo.) A sociedade de escolhas ilimitadas só é limitada pelo dinheiro. Tudo é mediado por ele. Na prática a sociedade de escolhas ilimitadas é na verdade uma sociedade na qual ninguém escolhe abertamente por você. Abertamente. Porque já não precisam. A ilusão da liberdade é mais lucrativa. Mas essa é outra história. Vamos nos concentrar no fato de que aquele mundo fechado acima mencionado rachou e os filhos já não podem se agarrar (nem querem) ao que seus pais acham que é certo. Estamos girando no vácuo. Não sabemos o que queremos porque podemos querer o que quisermos.

domingo, 4 de março de 2012

Um em Cristo

Converter-se é abandonar partidarismos. A situação política na qual transcorreu o ministério de Jesus pode nos ajudar a esclarecer isso. À época de Jesus a Palestina estava sob domínio do Império Romano. Naturalmente a contragosto. Os judeus aguardavam o messias como aquele que os libertaria do jugo de Roma. Portanto só poderiam ver com maus olhos aqueles dentre os judeus que colaborassem com os dominadores. Havia inclusive um grupo de radicais chamados zelotes dispostos a conseguir a libertação de Israel pela via armada. Agora vejamos os doze homens escolhidos por Jesus para dar prosseguimento a sua missão na terra. Nem todos eram pescadores, homens do povo, iletrados. Um deles, chamado Simão, era zelote e outro, chamado Mateus, era coletor de impostos. Eles se encontravam em posições opostas da organização social. O coletor de impostos era uma espécie de representante da dominação romana. Ele fazia o serviço sujo para o Estado romano e ainda se aproveitava disso enriquecendo-se ilicitamente, cobrando mais do que devia, prática comum entre os coletores. Mateus era portanto um traidor, um inimigo do povo. E no entanto Jesus chamou a ambos, o revolucionário e o funcionário público.

A vocação cristã concilia inimigos e os reúne sob um propósito transcendente. O cristão tem prioridades que nada têm que ver com programas partidários. Quase sempre alinhar-se significa restringir a proposta universalista do evangelho. O universalismo e a transcendência do evangelho só podem trazer insatisfação aos politizados. O evangelho exige um posicionamento que os politizados só podem considerar ambíguo. É ficar em cima do muro. Mas não é essa a questão. Jesus separou igreja e Estado, muito antes que o Estado cogitasse assimilar a igreja em seu próprio favor, quando proferiu sua famosa frase: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Não é a resposta de um alienado, mas de alguém perfeitamente ciente de que os limites da religião coincidem com o da política e vice-versa.

O engajamento político logo dá num beco sem saída. Em algum momento é preciso saltar. A igreja é a comunidade terrena do Espírito Santo. É a comunidade do salto. Seus pés estão plantados no chão, mas seus braços apontam para os céus. O alvo se encontra nas alturas. Nem todos estão dispostos a abraçar tais paradoxos. É mais fácil se entregar ao reducionismo e ao maniqueísmo de esquerda e direita, de militância política e alienação espiritualista, de verdade científica e obscurantismo religioso, de fundamentalismo positivista e fundamentalismo cristão. Colocar-se a favor dos pobres e falar contra os ricos é esquerdismo. Tentar resgatar a busca humanista do equilíbrio é secularismo ou irracionalismo (depende de onde venha o ataque, se dos fundamentalistas religiosos ou cientificistas). O consenso da sociedade de consumo só se rompe por questões totalmente irrelevantes e graças a polarizações obtusas, que ignoram que a realidade é sempre mais complexa.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Morto-vivo

A melhor imagem para o pecado é a do vício. E nós, cristãos, somos viciados em recuperação. A dinâmica do vício é obsessivo-compulsiva. Ela consiste numa fórmula mais ou menos como essa: eu não posso viver sem isto. Isto pode ser qualquer coisa: chocolate, homens, mulheres, televisão, sexo, sucesso, fitness, dinheiro, luxo, status, futebol, etc. Isto é um ídolo. Um ídolo é tudo o que ocupa o lugar de Deus não sendo Deus. É o impostor da divindade ou uma divindade impostora.

A Bíblia diz, pela boca do apóstolo Paulo e de Jesus, que o pecador está morto por causa do seu pecado. Reescrevamos isso substituindo os termos pelas definições anteriores. O viciado está morto por causa do seu vício. Aquele que acha que não pode viver sem chocolate/um corpão/você está morto por causa de chocolate/corpão/você. O vício te matou. Um dos significados neotestamentários para a morte mais recorrentes é escravidão. Reescrevamos o enunciado mais uma vez adaptando-o a mais essa definição. O viciado é escravo do seu vício. Aquele que acha que não pode viver sem chocolate/um corpão/você é escravo do chocolate/um corpão/você.

O pecador é, portanto, retratado na Bíblia como um zumbi. O que é um zumbi? É uma criatura que parece viva, mas que está morta, e que vaga pelo mundo com uma fome insaciável de cérebro. Ou seja, um viciado morto-vivo ou um morto-vivo viciado. Todos nós éramos mortos-vivos viciados.

A Bíblia nos diz que Jesus nos deu vida e nos libertou da escravidão do pecado. Ou seja, ela transformou mortos-vivos em gente de verdade. Ninguém que não tenha nascido de novo é um ser humano de verdade. É apenas a promessa de um ser humano. Isso porque não é livre nem está vivo. É um monstro se fazendo passar por um ser humano. Só Jesus era um homem de verdade. Mas sua morte e ressurreição nos deu o poder de sermos gente de verdade. Quem tem ouvidos para ouvir ouça.

Ainda sobre liberdade

A liberdade, cedo ou tarde, descamba para a libertinagem, por menor que seja. Convém nos corrigirmos e nos aperfeiçoarmos. Leva tempo. Mas a alternativa à liberdade não é melhor nem mais segura. O controle engessa as consciências e conduz à morte. Uma das formas mais disseminadas da morte é a hipocrisia. É o morto se fingindo de vivo. É melhor uma igreja libertina disposta a se santificar que nenhuma igreja. E a igreja é igreja de vivos. Vivos pecam e são perdoados. O evangelho se resume nesta dinâmica. Só os mortos não pecam. Temos gastado muito dinheiro e tempo com verniz. É hora de aprofundarmos a teologia e enfrentar a parte inglória da humanidade. Manter o horror diante dos olhos para então abraçar a graça salvadora de Jesus como resposta. O amor de Deus só faz sentido para gente que dele se aproxima buscando ser perdoado. Os justos não precisam ser amados. Estão esperando recompensas. Quanto a nós - a nossa recompensa é Cristo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Liberdade cristã

O moralismo está para o evangelho como a maquiagem está para a juventude. O primeiro tenta simular os efeitos que apenas o segundo pode produzir. Só o evangelho pode realmente transformar uma pessoa. Transformação acontece de dentro pra fora. Mas o moralismo só pode alterar o exterior. Da exterioridade se ocupam também os hipócritas, reduzindo a espiritualidade à encenação. Paulo preferia uma igreja libertina a uma igreja hipócrita. Vide as duas epístolas aos coríntios. Quando digo preferia, me refiro ao evangelho que ele pregou aos coríntios e ao modo como ele enfrentou as dificuldades com aquela comunidade. Ele não exerceu domínio sobre a fé de seus ouvintes. Ele argumentou com eles. Mostrou-lhes que não convinha que se entregassem a quaisquer desejos como escravos. Ele enfatizou a liberdade cristã sob todos os aspectos. Essa liberdade concedida no evangelho nos informa que estamos livres do pecado de uma dupla maneira: somos livres para pecar, porque já não há condenação sobre nós, e para não pecar, porque nascemos de novo e já não somos escravos da velha natureza do pecado. Quem lê entenda. Agora finalmente podemos escolher.

A hipocrisia se alimenta da aparência e do controle sobre a vida alheia. Ao passo que a libertinagem seria um efeito colateral e passageiro (não necessário, mas possível) do processo que conduz as pessoas à liberdade. O único início legítimo do evangelho é a liberdade. A doutrina da justificação pela fé está assentada sobre a nossa total incapacidade de fazer a coisa certa. O novo nascimento é um novo começo. Nossas dívidas foram saldadas na e pela cruz. Gloriar-se na cruz de Cristo, como diz Paulo, é alegrar-se com o fato de que somos justos por causa dele. Já não devemos nada a ninguém. Ou - o que é a mesma coisa - devemos tudo àquele que se entregou por nós, como quem deve a vida ao melhor amigo. É sobre esse tipo de consciência que a verdadeira espiritualidade deve estar apoiada. E não sobre o medo do inferno ou da condenação. Esses são os rudimentos do mundo. Estamos em casa agora.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Permanecer na verdade

Há esse grande perigo do qual principalmente quem nasceu de novo não está livre até que este mundo tenha passado, isto é, a incapacidade de se satisfazer com a verdade. A verdade não tem bastado e porque não tem bastado começamos a buscar complementos para ela e então Cristo crucificado já não parece dar conta do que vivemos e do que precisamos. Novas unções e revelações relativas a anjos e homens começam a ser acrescentadas para renovar os corações embrutecidos. A palavra anunciada já não é o suficiente. É nesse momento que corremos o perigo de apostatar. Apostatar é não insistir na cruz de Cristo e na sua suficiência. E não digo que isso seja fácil. É impossível. Permanecer em Cristo - conforme a terminologia joanina - é impossível para aquele que não nasceu de novo. E é preciso nascer de novo repetidas vezes. E só se nasce de novo a cada dia e a cada momento quem insiste na cruz e em sua suficiência. Aqui a argumentação se torna circular, de fato. Isso porque permanecer em Cristo e insistir em sua cruz são senão partes da mesma disciplina espiritual baseada ela toda na fé. Quem mais bem explicou o que é a fé e portanto fez com que ela deixasse de ser mais uma coisa vaga com que pregadores concluem o sermão deixando o mais difícil para sua audiência não foi o autor de Hebreus, apresentando uma definição conceitual extremamente sofisticada no capítulo 11 de seu livro. Não, foi Jesus dizendo aos discípulos que o seu coração pode ser encontrado onde está o seu tesouro. O tesouro de um homem é o objeto de sua mais íntima fé. Isso quer dizer que ter fé em Jesus é colocar o seu coração nele como quem descansa das preocupações da vida porque ainda tem... Muita gente tem completado essa sentença com sua conta bancária. E de fato completa uma sentença a respeito de si mesmo. Mas então aquele que permanece em Cristo e insiste em sua cruz é justamente aquele que esforça seu coração no sentido de este se colocar como um fardo muito pesado é colocado no chão e esse chão onde o fardo se apoia ou é descarregado é Jesus e sua cruz. É dizer ufa! quando diante de declarações como a que lemos no evangelho de João: "Eis o cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo". Isso tem que ser novo e novamente novo e novamente novo todos os dias e a todo o momento de nossas vidas. A verdade tem que nos bastar. Só o Espírito pode renová-la naquele que a ele se volta pedindo que seu coração seja colocado todo ele sobre a cruz de Cristo.

domingo, 12 de junho de 2011

A torneira continua pingando

Jesus é um problema.

De alguma forma eu sei que ele faz sentido, como minha intuição adverte. Mas ele e as pessoas falando dele e o mundo todo falando dele como fala dele insistem em não fazer sentido, e principalmente algo nele – repito – insiste em não fazer sentido. E não apenas perifericamente, como se fosse um detalhe estapafúrdio, uma declaração indigesta que ele tenha feito aos fariseus, como muitas coisas na Bíblia ferem a nossa sensibilidade extremamente higiênica.

Não, a coisa vai além.

Ele todo é uma promessa que me fizeram desde que eu passei a conscientemente participar da civilização ocidental. É algo com que em algum momento da vida você tem de lidar e então transformar numa escolha. Você vai ter de aceitar ou recusar e passar a viver com o resultado dessa escolha. Ao menos, é isso que idealmente deveria acontecer, mas que naturalmente não acontece. Por uma questão de inteligência, digo que não pude ainda escolher. E ninguém que eu conheça ainda escolheu. Esse é que é problema. Estamos todos adiando essa questão como uma tarefa muito chata que é sempre substituída por coisas muito mais divertidas, já que vivemos num mundo repleto de opções de diversão. Eu poderia culpar o entretenimento e fazer minha duvidosa espiritualidade estar em risco por causa da televisão e da internet. Seria uma covardia plenamente verossímil, mas apenas isso: verossímil. É o tipo de coisa que você ouve e só pode aceitar porque não faltam evidências para tanto, mas que no fundo você sabe que não é exatamente assim.

Isso e o fato de Jesus ser um problema me levam a concluir que a verdade é, nesse mundo, apenas um pressentimento, o que me incomoda muito. Avançamos tanto na capacidade de comunicar, de vender uma ideia, e aquilo que deveria ser a maior das ideias, o mais persuasivo dos argumentos – a verdade –, é tão pouco evidente. Deus deveria dar uma boa olhada em seu departamento de marketing e fazer algumas mudanças. A verdade não passa de uma dor de dente que nos faz acordar no meio da noite, levantar da cama e ir até o banheiro para checar qual é mais ou menos a situação da nossa boca só para, chegando lá, perceber que parou de doer. E a coisa se repete mais umas cinco ou seis vezes durante a vida e só nos volta à memória quando acontece de novo, então lembramos de todas as outras vezes, mas, como a dor para, desistimos e nos convencemos de que não é nada. É a nossa estupidez primordial: considerar alguma coisa nada.

A ciência começa com uma desconfiança desse tipo. Ficamos incomodados com um detalhe e humildemente dedicamos nosso tempo e nossas vidas a dar forma e voz a esse detalhe, tentando justificar a perplexidade infantil que ele nos suscitou. Sem nós, ele poderia muito bem continuar sendo um nada. Podemos ser realmente muito inteligentes quando queremos.

Algumas pessoas choram descontroladamente, estão sentadas num bar ou num café, estão de férias caminhando na praia, sozinhas ouvindo as ondas se lançarem até a praia, e começam a chorar sem saber aonde isso vai dar. Eu não sou dessas pessoas. Acho que chorei apenas quando era criança, porque a verdade é que a minha vida é muito boa. E é assustador, ainda que eu mesmo não me assuste, que o fato da minha vida ser muito boa se deva simplesmente à sorte. Às vezes consigo relacionar a noção de sorte ou uma de suas variantes com essa outra noção a que damos o nome de Jesus. O resultado é um rosto no meio da escuridão, um vulto que, descrito, assustaria uma criança e que, visto, me assustaria. Jesus é certamente isso: um fantasma. E, como somos todos cartesianos, reagimos como um cartesiano reagiria diante de um fantasma: nós o ignoramos. Ele está na sala? Então sentimos fome e vamos para a cozinha fazer um lanchinho. Ele está no quarto? Então resolvemos terminar de ver aquela reprise na televisão, mesmo que tenhamos que dormir mais tarde.

Também me incomoda que Deus esteja tentando falar comigo e com as pessoas através da dor e do choro. Que Deus seja um incômodo. Percebam que eu deliberadamente passei a falar de Deus como se fosse óbvio equacioná-lo com Jesus e tomar um pelo outro a hora que quisermos. Isso também faz parte do mundo ocidental como uma herança a ser elaborada individualmente. Então Deus é uma dor de dente ou um choro descontrolado. Um religioso me corrigiria, dizendo que estes são sintomas da ausência de Deus, ou da falta de Deus. Deus passa a ser uma falta. Um não. Curiosamente isso faz sentido na minha cabeça. Jesus ser um não. Mas também curiosamente eu sou um leitor da Bíblia e li Paulo escrevendo que Jesus é apenas um sim, o eterno sim de Deus aos homens. Faço questão de citar: “O filho de Deus, o Cristo Jesus, que vos anunciamos, eu, Silvano e Timóteo, não foi sim e não, mas unicamente sim. Todas as promessas de Deus encontraram nele o seu sim”. A maioria das pessoas quer ouvir esse sim de Deus. Mas Deus até pode dizer sim, e Jesus ser esse sim dito de Deus, mas Deus em si mesmo é um não. É assim que ele tem sido na minha vida e na vida daqueles que eu mencionei.

Não quero mergulhar a coisa toda na melancolia. Jesus ser um não não é absolutamente insuportável porque é o que tem sido, como eu disse. É a situação atual, que até nos permite refletir sobre o assunto. A autoconsciência é um de seus atributos e, para ser franco, um de seus piores atributos. Se não fôssemos autoconscientes, talvez estivéssemos minimamente abertos para um diagnóstico alheio, mas, ao contrário, afundamos nas nossas próprias conclusões porque, no fim das contas, sei que estamos certos quando percebemos que alguma coisa está errada e que não há nada que possamos fazer. Mas aquele rosto na escuridão ainda me espreita, uma massa se deslocando conforme eu também me desloco, me fazendo retomar todos os cuidados que eu tinha quando, menino, achava que poderia me proteger dos espíritos cobrindo-me com o lençol até o pescoço, sem deixar os braços de fora. Essa era a providência fundamental: minha segurança dependia de cobrir inclusive os braços e os pés. A cabeça podia ficar exposta. Afinal, eu precisava respirar. Ou então, como ouvi de uma amiga minha, que fazia uma barreira de ursinhos e outros bichos de pelúcia em torno de si, na esperança de que eles a defendessem do reino espiritual do desconhecido.

Sinceramente, ainda dependemos dos lençóis e dos ursinhos de pelúcia para nos proteger de Jesus. Desconfio que, para aqueles que nunca viram uma, mas que passaram a vida temendo ver, todas as assombrações são Jesus. Todos os vultos furtivos são Deus. E a vontade de qualquer coisa indefinível que de vez em quando nos assalta e que eu costumava resolver associando-a imediatamente com sorvete, porque eu sempre gostei muito de sorvete, é a vontade de se ver com Jesus e decidir de uma vez por todas o que vamos fazer com ele. Posso responsabilizar a cultura ocidental por isso. Ela sempre foi um evangelista muito competente, porque me convenceu da necessidade de pensar seriamente na possibilidade de que Jesus exista do modo como se diz existir, mas também muito vaga, porque é extremamente difícil passar da pregação para a vida segundo as nossas circunstâncias mais banais e cotidianas. É como tentar consertar uma torneira que pinga recorrendo a Crítica da Razão Pura. De alguma forma, a Crítica da Razão Pura fala também da torneira pingando e, principalmente, de mim tentando consertá-la, afinal a torneira pingando é um fenômeno no sentido que Kant lhe deu e eu mesmo sou uma versão empírica do sujeito cognoscente que vemos ao longo das páginas de sua Crítica. Mas é fácil imaginar que, ao final da leitura de suas quinhentas páginas, devidamente anotadas, a torneira continuará pingando. Então, minha oração a Jesus, supondo que eu lhe desse essa chance e orasse a ele, e estou certo de que muita gente estaria pronta a me acompanhar, seria mais ou menos a seguinte: “Jesus, você que é o caminho, a verdade e a vida: a torneira continua pingando”.

À inscrição numa parede “Jesus é a resposta” alguém acrescenta logo abaixo “Mas qual é a pergunta?”. Muita gente considera isso uma blasfêmia, mas acho que é simplesmente teologia. A vida toda tenho ouvido que Jesus é a resposta, mas ninguém acrescenta para quê. É a pergunta que me interessa. Por isso, Jesus é um problema. Eu assumo o lugar de Pilatos lhe perguntando o que é a verdade. Sei que Pilatos não era a melhor das pessoas e que, no interrogatório e julgamento de Jesus, o cinema costuma retratá-lo como um sujeito muito razoável, que condena o messias a contragosto, e que nós compramos essa sua imagem. Meu Deus, ele era um político! Mas, toda vez que leio o evangelho de João, instantaneamente me identifico com Pilatos, sensibilizado com sua pergunta, que também é a minha e que cada vez mais sinto ser a pergunta mais importante da Bíblia. Ele a fez logo depois de Jesus lhe ter dito que veio ao mundo para dar testemunho da verdade e que quem é da verdade escuta a sua voz. Pois bem, estamos escutando sua voz e ele até pode estar nos dizendo a verdade, mas como saberíamos? A Bíblia relata que, “tendo dito isso”, isto é, tendo perguntado o que é a verdade, Pilatos saiu. A história não continua porque Pilatos saiu. O silêncio de Jesus fez Pilatos sair? Pilatos não esperou tempo suficiente? Se Jesus fez silêncio, era o silêncio já a resposta, como quem quer dizer: “você está me perguntando o que é a verdade; pois bem, eis ela diante de você”? Sim, Jesus é a verdade. Mas eu não entendo Jesus.

Como saber que Jesus é a verdade é mais ou menos o mesmo problema de como saber que Deus existe. E acho que a solução é a mesma, frustrante para a maioria de nós: não dá pra saber. O religioso me diz que eu tenho que tentar. É o que Pascal chamava de aposta. Mas, para topar a aposta, é necessário que eu saiba do que se trata. Estou apostando exatamente no quê? Eu preciso ter uma ideia para, no mínimo, saber que parte de mim eu tenho que investir nisso, afinal não se trata de dinheiro e não é meu bolso que está em jogo; e, se não é meu bolso, mas ainda estamos falando de uma aposta, o que está em jogo? O que eu tenho que apostar? Vão me dizer que é a vida. Mas a vida não me parece uma noção suficientemente universal para fazer frente a Deus. O que estou tentando dizer é que uma pessoa que ouve a palavra vida numa sentença não pensa necessariamente o mesmo que eu e que mesmo o que eu penso hoje pode mudar amanhã. Tem esse verso do Brecht que diz: “A verdade para mim é como uma casa e um carro. E eles me foram roubados”. Eu posso muito bem dizer que a vida é para mim como uma casa e um carro, ou como minha esposa e meus amigos, e estarei sendo até mais exato que o foi Brecht falando da verdade. O fato é que estamos jogando com as palavras, e elas não mentem, mas nós mentimos, porque não sabemos direito por que fazemos o que fazemos com as palavras. Se Jesus é um problema, nós somos o problema.

Muitas sutilezas nos separam de Deus, sutilezas nossas e dele, ou de seus teólogos. Mas reconheço que a maioria de nós simplesmente não está disposta a se envolver profundamente em nada. Contrariaria a tendência geral. A palavra de ordem é “Não se preocupe com isso”. Exigimos facilidades. O esforço generalizado da nossa formação social é criar uma gigantesca democracia de serviços na qual a gente possa consumir tranquilamente sem precisar se envolver. A ideia é justamente a de que se envolver é o tipo de coisa de que avanços tecnológicos e sociais devem nos poupar. Temos que tornar o envolvimento, o engajamento e o compromisso supérfluos, e creio que nunca vivemos no automático como hoje em dia. Deus precisa seguir nesse sentido se quiser ganhar espaço. Ele precisa se reinventar para facilitar a nossa vida. Não acho que queiramos lhe dar um rosto e hospedá-lo em nossa casa, ou mesmo em nosso coração, porque não tem onde dormir. Esse Deus se parece demais com um mendigo. Sua pobreza nos constrange, e o constrangimento é uma forma de abuso que não precisamos mais aceitar.

Mas, ainda assim, quando entardece e a gente contempla os céus, que se espraiam até se perderem em si mesmos, é como se nós acabássemos transportados não sei exatamente para onde, mas convencidos de uma generosidade inesgotável, testemunhada pela natureza. Fala-se no sentimento oceânico, que Freud negava ter sentido, sendo de qualquer forma essa a palavra dele. E mais uma vez dependemos do que dizemos, mesmo quando o assunto é o inefável ou o desconhecido, para onde Deus sempre parece se recolher, não importa o quanto a ciência faça diminuir o tamanho e a profundidade do que não sabemos.

Às vezes, por um momento, rápido demais para ser fixado em palavras, a dor de uma pessoa se mostra a nós, que geralmente precisamos de algum suporte material para resumir o que vemos, como a imagem da cinta com que ela era espancada por seu pai ou a casa onde ela cresceu sofrendo abusos. E se essa pessoa morre ou se vai para longe de nós, permanecemos com essa imagem, na qual encapsulamos aquela vida, que se torna compacta, mas para a qual, toda vez que voltamos a olhar, é como se espiássemos o abismo.

Se Deus é simplesmente um homem, e isso é Jesus, então é difícil saber como ele pode ter um rosto humano, mas ao mesmo tempo esse rosto ser o de todos os homens, de todas as épocas, os bons e os maus, os justos e os injustos, os exploradores e os explorados, os espancadores e os espancados, a vítima e seu algoz, como podemos todos estar nele, que às vezes imagino ser aquele lugar para onde a visão dos céus sem fim nos transporta, o único lugar onde podemos caber todos nós sem ao mesmo tempo ser o pior lugar do mundo. E me faz bem – no fim, é apenas isso, essa sensação, tão desprezada pelos espíritos esclarecidos –, me faz bem a ideia de que em um só homem caiba o mundo todo e a história e as garças e os bêbados e o desespero e a dança e as promessas de felicidade e justiça e o abismo, e que mesmo assim, com tanto peso, esse homem não se dobre, mas permaneça parado, de pé, na escuridão, sem se cansar. É essa sua plenitude?

domingo, 5 de junho de 2011

O pecado é o padrão

O pecado é o padrão. O padrão te afasta de Deus consumindo toda a sua energia na tentativa de se adequar. Você, querendo ser belo e desejável, tem se gastado dia após dia no esforço de se parecer com um determinado tipo de pessoa, de homem, de mulher. Você se mede pelas exigências estipuladas pela mídia sem se dar conta de que a mídia é Moloque e que você é só mais um sacrifício. Academias são como altares onde diariamente sacrificam-se vidas a um deus violento, terrível e insaciável. Toda carne e sangue do mundo não será o bastante até que você também seja imolado. Não se deixe apanhar. Não se torne mais um profeta de Baal. Não invista na sua morte e na dos outros.

Pecado

Você sabe qual é o seu pecado. Eu não preciso apontá-lo. Você mesmo, em seu coração, se acusa e se condena. Meu papel é dizer o que você tem de fazer com essa culpa. O que você tem de fazer com o seu pecado. Você precisa levá-lo a Jesus. A Jesus. E não a mim. E não ao pastor. E não ao padre.

Você precisa confessá-lo a Jesus e Jesus te perdoará e te libertará. Porque o pecado é um vício. E, por causa desse vício, cometemos abusos contra as pessoas e contra nós mesmos. Mas ele é a cura. Ele é a nossa felicidade e a nossa satisfação. Não deixe que mais nada seja a sua felicidade. Não deixe que mais nada te satisfaça. Nosso maior pecado é desprezar Deus e ocupar o lugar dele em nossas vidas com um bando de falsos e ridículos substitutos: sexo, dinheiro, bebida, trabalho, fama, filhos, chocolate, eu, você. Até chocolate. Somos muito burros.

Os falsos deuses do Antigo Testamento eram deuses da fertilidade. Fertilidade é o nome antigo da prosperidade. Baal era um deus da prosperidade. Determinamos o valor das coisas com base no dinheiro. Saber se uma coisa vale a pena ou o sacrifício é perguntar: Quanto custa? Quanto eu vou ganhar com isso? A pergunta pelo valor é uma pergunta pelo valor monetário.

Nosso maior pecado é a idolatria. Mas hoje não se trata de Baal. Hoje se trata de fama e sucesso. A verdade bíblica sobre os ídolos é que eles não podem nos satisfazer e, enquanto nos enganamos a seu respeito, eles nos devoram, exigindo sacrifícios constantes e cada vez maiores. Horas na academia em busca do corpo perfeito. Horas no trabalho em busca de sucesso corporativo. Pensamentos autodestrutivos porque não nos aceitamos como somos nem chegamos aonde deveríamos ter chegado. Quanta violência cometemos contra nós mesmos porque queremos nos adequar a um padrão. Eu lhes digo que esse padrão é um padrão de Baal. Esse padrão é um ídolo.

A televisão é um grande Moloque a quem sacrificamos as crianças e os adolescentes. Comerciais, programas, videoclipes, filmes e seriados dizendo que eles não são bonitos o bastante, magros o bastante, legais o bastante. A ideia é que eles precisam ser magros, bonitos e bem-sucedidos. Tudo para vender alguma porcaria de que não precisamos. Mas se nos vestirmos assim, comermos isto e tivermos aquilo, então seremos completos. Seremos satisfeitos. Seremos felizes. São os profetas de Baal fazendo falsas promessas à gente de coração esvaziado. Não deixe que te enganem. Não se engane. Não engane as pessoas.

Comer chocolate não é pecado. Buscar satisfação fora de Deus sim.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Não confunda sintomas com causas

Não confundamos sintomas com causas. A maioria dos pecados contra os quais pregadores vociferam e igrejas fazem campanha são simplesmente sintomas. Os pecados sexuais são o melhor exemplo. Prega-se contra práticas; fazem-se listas do que se pode ou não se pode fazer no que diz respeito a sexo. Estamos zelando pela moral e pelos bons costumes, dizemos. Mas não é pela moral e pelos bons costumes que deveríamos zelar. Mas sim pelo evangelho. O evangelho não é moral. O evangelho não é ética. O evangelho não é política. É mais, muito mais que isso. O evangelho é o seu próprio caminho, que inclui muitas coisas que chamamos de moral, ética e política, mas à sua própria maneira, à maneira do evangelho. O único método do evangelho é ele mesmo.

Pregamos contra sintomas, e não contra causas. Invertamos a equação. Os pecados sexuais são apenas expressões de um problema mais profundo, que, devidamente investigado, nos chocará. Ou, na linguagem neotestamentária, nos escandalizará. Descobriremos que heterossexuais cometem os mesmos pecados que homossexuais. A única diferença é a forma como esses pecados se evidenciam aos olhos dos outros. A única diferença é a publicidade dessas expressões.

Posso nomear uns três pecados que eu, heterossexuais comportados e homossexuais assumidos cometemos vivendo como vivemos: narcisismo, vaidade e egocentrismo. Porque pecados sexuais são basicamente expressões da mesma busca egoísta de satisfazer a si mesmo. Custe o que custar, seremos felizes. Mesmo que tenhamos que usar pessoas para isso, como temos usado. Mesmo que tenhamos que usar os corpos de pessoas para isso, como temos usado.

Lemos mal Romanos 1.18-32. Nós investimos contra os sintomas e nunca chegamos às causas. Condenamos as coisas erradas. Deveríamos condenar o individualismo, o hedonismo e o comodismo da nossa cultura, que é uma cultura de vítimas e mimados, que viveram a vida toda no luxo e nunca estão satisfeitos com nada. Em vez disso, escolhemos alguns bodes expiatórios - sem dúvida alguma, os mais fracos do bando - e, como lobos, os atacamos. São aqueles que têm dificuldade para esconder a própria sujeira. Mas nós, os fortes, sabemos pecar em segredo, de portas fechadas, sem deixar rastros.

O sermão do monte é tão terrível e brilhante porque pega cada um dos mandamentos que os religiosos da época diziam praticar, gabando-se de sua justiça de butique, e mostra que o buraco é mais embaixo. "Vocês ouviram o que foi dito..., mas eu lhes digo", Jesus repete. A primeira parte é a da justiça aparente; a segunda é a exposição do real problema que cada um dos mandamentos envolve. Você percebe que, no sermão do monte, todos nós estamos implicados nos mesmos pecados.

"Vocês ouviram o que foi dito sobre adultério; mas eu lhes digo que se vocês olharem para alguém na rua para despi-lo em pensamento, vocês já pecaram." É tão difícil entender o que está escrito aí? Não está claro que, se eu aponto o irmão que trai a esposa ou o casalzinho de jovens que faz sexo antes do casamento, estou acusando a mim mesmo porque cometo o mesmo pecado que eles, ainda que à minha maneira? Isto é, em segredo, discretamente, em pensamento? "Não julguem se não quiserem ser julgados." Isso é o fundamento, e o temos observado?

Repetimos: "Não existe pecadinho e pecadão; todos os pecados são iguais". Mas acreditamos realmente nisso? Acreditamos que nossa maledicência no trabalho ou na igreja é tão ruim quanto fornicação? Até a palavra é mais feia: fornicação. Quem fornica deve realmente ser mais feio e malvado que quem maldiz. Olha o nome: fornicário. Credo.

Lemos mal Romanos 1.18-32. Essa passagem nomeia sintomas de um único e maior pecado: desprezar Deus e a possibilidade de conhecê-lo. O pecado é compulsivo. É um vício. O evangelho, quando condena, mostra imediatamente a solução ou cura. A ênfase do evangelho é a solução. Por isso ele é evangelho, isto é, boa notícia. Desprezamos Deus, mas Deus se humilhou vindo nos buscar.

Precisamos nos perguntar por que nos entregamos ao vício. Nossa necessidade de sexo é a necessidade de Jesus. Só que ainda não sabemos disso. Não nos permitimos descobri-lo. E esse é o nosso pecado: não dar uma chance para Deus ser a nossa satisfação em vez de buscarmos nos satisfazer por nossos próprios meios.

Nossa necessidade de coisas bonitas é a necessidade de Jesus. A necessidade de Jesus é a forma mais concreta e simples de dizer aquilo que o mundo inteiro tem dissimulado o tempo todo. A moça que coloca silicone nos seios coloca silicone nos seios tentando satisfazer uma necessidade que é a necessidade de Jesus. Só que ela não sabe. Ela quer ser bela, isto é, ela quer ser desejada, isto é, ela quer ser amada. E Jesus é o Amor. Da mesma forma, nossa necessidade de viver intensamente é a necessidade de Jesus. Porque Jesus é a própria Vida. Não temos entendido isso. E isso é o fundamento.

O evangelho é o método. Ouça as palavras de Jesus. E o evangelho como método procede assim:

- acusa o acusador;
- convida o pecador;
- nomeia causas, e não sintomas;
- leva o ouvinte a ELE MESMO reconhecer seu pecado.

(Nas próximas postagens, quem sabe eu consiga esclarecer textualmente esses pontos em Romanos e no sermão do monte.)

Voz que reclama

Bem-aventurados